Einstein vive



Domingos Soares

24 de fevereiro de 2012


Resumo

No início do século XX, o físico Albert Einstein propôs teorias inovadoras que romperam com paradigmas existentes. Dentre essas, as teorias da relatividade reinvidicaram supremacia sobre as teorias newtonianas da mecânica e da gravitação. Einstein vive, de certa forma, na personalidade de muitos cientistas atuais que se debruçam sobre os problemas da ciência moderna. Por outro lado, uma parcela significativa da comunidade de físicos se arvora em sacerdotes do templo sagrado do pensamento einsteiniano, recusando mesmo discutir alternativas científicas aos novos — agora velhos — paradigmas einsteinianos. Introduzo, neste contexto, o “Efeito Einstein Fossilizado” e discuto a sua aplicação na cosmologia moderna e em alguns exemplos pessoais.

 


1. Introdução

Se Albert Einstein fora como certos cientistas, que elevam à categoria de dogma sagrado os resultados científicos de seus mentores, ele não teria realizado a sua magistral obra de física teórica, que extrapolou o domínio da física e revolucionou a nossa visão do mundo. Tais cientistas, que sempre existiram, atravancam, de uma forma ou de outra, o progresso da ciência, e por extensão, o progresso da humanidade.

Einstein vive, não nas manifestações dos arautos do pensamento científico fossilizado, mas naqueles indivíduos — cientistas, estudantes, gente comum — que ousam questionar o padrão estabelecido. Einstein foi exemplo magistral deste último tipo de pessoa. Ele era profundo conhecedor e admirador da obra de Isaac Newton. O seu trabalho teórico mostrou que as teorias newtonianas poderiam ser melhoradas. Einstein ousou, um dia, contrariar Newton.

Esta mentalidade vive entre nós, apesar das forças contrárias exercidas por aqueles que estão comprometidos, por interesses pessoais de toda a natureza, com a concretagem das teorias científicas.

Na seção 2 trato dos questionamentos às teorias einsteinianas na cosmologia moderna. Introduzo aí o conceito de “Efeito Einstein Fossilizado”. Como autor, eu tive a oportunidade de sofrer restrições, por vezes virulentas, por parte de representantes da, assim chamada, Academia Fossilizada, vítimas do Efeito Einstein Fossilizado. A seção 3 apresenta três casos pessoais desta natureza. As considerações finais estão na seção 4.



Albert Einstein (1879-1955) e Isaac Newton (1643-1727), os maiores cientistas da ciência
moderna. Einstein ainda “não era” Einstein quando propôs teorias que contrariavam os
preceitos newtonianos: um cientista desconhecido questiona a ortodoxia estabelecida. Apesar
de frequentemente reprimida, esta saudável audácia ainda existe nos tempos atuais (Fotos:
Domínio Público).



2. Cosmologia moderna

O Modelo Padrão da Cosmologia (MPC) apresenta atualmente um dos mais sérios desafios para a Teoria da Relatividade Geral (TRG) de Einstein. A TRG possui grande sucesso em outras aplicações como, por exemplo, no movimento planetário — a TRG resolveu um problema sério na órbita newtoniana do planeta Mercúrio. A TRG é uma teoria de gravitação geral e possui soluções diferentes para problemas físicos diferentes. Ao ser aplicada a um modelo de universo, a TRG aparentemente falha (ver uma discussão detalhada sobre esta questão em Soares 2009).

O MPC — e por extensão, a TRG — só se sustenta num universo em que 99,5% do conteúdo de matéria e energia não é conhecido observacionalmente, ou seja, é escuro, ou ainda, faltante (Turner 2002, Primack 2004). Existe um problema de matéria bariônica faltante, um grande problema de matéria não bariônica faltante e um enorme problema de energia escura faltante. Estes três componentes totalizam os 99,5% do conteúdo total mencionado acima. Assim, a TRG só funciona no MPC se aceitarmos que o universo é — otimisticamente, por ora — basicamente desconhecido. Apenas 0,5% dele é o que podemos detectar por qualquer tipo de radiação, com os nossos observatórios em terra e no espaço.

Apesar de tudo isto, a contestação da TRG é pouco aceita em grande parte da comunidade acadêmica. Existem muitos estudos de teorias não relativistas aplicadas ao universo (ver Silva 2009, Soares 2012a e 2012b, para alguns exemplos), mas eles não repercutem de forma duradoura no meio científico.

A este comportamento científico, que leva à manutenção do status quo einsteiniano, chamarei de “Efeito Einstein Fossilizado” (EEF). A imagem do fóssil é apropriada pois este é algo que foi vivo no passado e que encontra-se, de certa forma, congelado, no presente. Na seção seguinte veremos três outros exemplos onde o EEF também se manifesta, em intensidades variadas.

3. Três casos pessoais

Apresentarei a seguir três casos nos quais a atuação do EEF é evidente. Estes casos referem-se a três artigos onde abordo temas diretamente relacionados ao trabalho de Einstein. As reações a estes artigos denotam diferentes gradações e/ou matizes do EEF.

3.1. Mecânica Relacional

Em 1998, o físico da Universidade de Campinas André Koch Torres Assis publica um livro onde apresenta uma crítica severa de algumas das idéias que permeiam o pensamento científico atual, incluindo-se aí os trabalhos de Newton e Einstein. Ao mesmo tempo, estabelece as bases do que ele considera uma mudança de paradigma na física, ou, em suas próprias palavras, “as bases de uma nova mecånica que implementa as idéias de Leibniz, Berkeley, Mach e muitos outros”. O livro de A.K.T. Assis intitula-se “Mecânica Relacional” (Assis 1998).

Tendo tomado conhecimento do trabalho, interessei-me pela sua abordagem crítica de temas considerados consolidados no meio acadêmico. Desta forma, fiz uma leitura cuidadosa do livro e submeti uma resenha para publicação na Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF), da Sociedade Brasileira de Física. O trabalho passou pelo crivo da arbitragem da RBEF e foi aceito para publicação (Soares 1999). A resenha não toma partido a favor ou contra o trabalho de Assis, limita-se a um relato imparcial das propostas do autor. Termino-a elogiando a iniciativa com as seguintes palavras: “Finalizando, o balanço é positivo: Mecånica Relacional é um livro de leitura cativante, e obrigatória para todos aqueles que amam o estudo científico da natureza. Instiga, de forma lúcida, a discussão de conceitos fundamentais e desafia o imobilismo intelectual”.

Após a publicação da resenha ocorreu uma sutil atuação do EEF, uma espécie de “EEF de 2a ordem”: não se deve comentar um trabalho que critica Einstein. Um artigo é publicado na RBEF (Escobar e Pleitez 2001) cujo intuito é claramente reestabelecer os fundamentos teóricos da física, questionados por Assis. O artigo de Escobar e Pleitez finaliza com as palavras: “Para terminar, esperamos ter deixado claro duas coisas: 1) não é apenas pelos testes diretos, desde Michelson e Morley, que as teorias da relatividade são aceitas como corretas em certo domínio de fenômenos. Mais importante ainda é a consistência que ela trouxe para diversos domínios: astronomia, aceleradores de partículas, física sub-atômica, o sistema GPS etc; 2) que a proposta da mecânica relacional [AK99] é errada e a resenha anterior [SO99] é, por isso, inconsequente”. Vemos aí a contundente e cristalina expressão do EEF e do novo EEF de 2a ordem.

Levanto, ainda, dois pontos: primeiro, Mecânica Relacional não é (ou está) errada. O máximo que se pode dizer é que a sua aplicabilidade está limitada a determinado domínio. Como, por exemplo, é o caso da mecânica newtoniana após os trabalhos de Einstein. Segundo, a minha resenha não é inconsequente, dado que o próprio artigo de Escobar e Pleitez estampa em seu título a frase A propósito de uma Resenha.

Não resta dúvida, apesar da conclusão dos autores acima, de que Mecânica Relacional representa enorme avanço conceitual na formulação de uma ciência da mecânica apropriada. Um julgamento mais completo por parte do leitor pode ser feito com as leituras de Assis (1998), Soares (1999) e Escobar e Pleitez (2001).

Incidentalmente, uma curiosidade acessória a respeito do autor de Mecânica Relacional. André Koch Torres Assis possui parentesco não muito distante com Albert Einstein. A mãe do cientista alemão é Pauline Koch Einstein (ver Overbye 2001, pág. 4). Sob meu questionamento, este fato foi-me confirmado pelo próprio André Assis, em comunicação pessoal. Obviamente isto não diz respeito ao mérito de sua obra científica.

3.2. Sutil é o Senhor

O físico teórico holandês Abraham Pais (1918-2000) foi grande amigo de Einstein. Escreveu uma das mais aclamadas biografias do gênio da física moderna intitulada Sutil é o Senhor...: a ciência e a vida de Albert Einstein (Pais 1995).

Após uma leitura detalhada do livro, escrevi um comentário sobre o mesmo intitulado Sutil é o Senhor... Abraham Pais (Soares 2003). Nele eu defendo a tese de que existem dois graves vieses na biografia: o primeiro, devido ao fato de Abraham Pais ser grande admirador e amigo de Einstein, e o segundo, devido ao fato de Einstein ser judeu como Pais. Tais fatos influem em abordagens que Abraham Pais faz de alguns aspectos da vida de Einstein, como tento mostrar em minha nota.

O artigo foi submetido e recusado por duas publicações nacionais dedicadas ao ensino de física. A primeira apresentou o artigo para um árbitro que, após a revisão, fez alguns elogios, mas argumentou que o artigo era vago e pouco profundo, não merecendo ser publicado. A segunda revista sequer submeteu o artigo para avaliação, respondendo que ele não poderia ser publicado — mesmo sem ter sido avaliado — “por não se enquadrar na linha editorial da revista”.

Eu vejo nestas recusas uma nuance sutil do EEF. O leitor novamente está com a palavra: sugiro as leituras de Pais (1995) e Soares (2003).

3.3. Mancadas einsteinianas

A Organização das Nações Unidas declarou 2005 o Ano Mundial da Física. “Ao longo do ano eventos salientarão a vitalidade da física e a sua importância no próximo milênio, e comemorarão as contribuições pioneiras de Albert Einstein em 1905”, conforme lemos na declaração de abertura do Ano.

Preocupado com a superexaltação de Einstein, que certamente ocorreria durante o Ano, pareceu-me adequado oferecer um contraponto à celebração. Escrevi um artigo intitulado “Mancadas einsteinianas”, onde chamei a atenção para algumas gafes de natureza científica cometidas pelo cientista. O artigo foi publicado no Jornal da Ciência Eletrônico, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (Soares 2005). E para a minha satisfação, o artigo suscitou fortes reações.

A primeira delas apareceu no dia seguinte à publicação, no mesmo órgão da SBPC: uma nota curta de um jovem físico teórico do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (Abramo 2005). A nota possui as características típicas do EEF: preconceituosa e destrutiva.

Os artigos que se seguiram foram de natureza totalmente oposta: investigativa e construtiva. O físico e professor da Universidade Estadual de Maringá, PR, Marcos Cesar Danhoni Neves apresentou quatro extensos artigos (Neves 2005, 2006a, 2006b e 2006c) todos eles com o mote Mitos e Mancadas einsteinianas, que de certa forma abordavam e expandiam a mesma temática que eu iniciara com o meu artigo.

4. Considerações finais

Nota-se nos exemplos citados acima, que o EEF é a manifestação de uma atitude reacionária e retrógrada, do ponto de vista do progresso científico, dado que obstaculiza este mesmo progresso.

Desde os tempos de Newton até os dias atuais existe um Efeito Newton Fossilizado, análogo ao EEF, e esse tambem tem feito as suas vítimas. Ele não teve força sobre Einstein, no entanto. Einstein vive em todo aquele que coloca o progresso científico como sua meta principal e não o agradar aos “magistrados e sacerdotes” dos templos e academias científicos.

A propósito, por que questionar Einstein hoje? Por dois motivos: por causa de problemas na Teoria da Relatividade Geral, como se vê no MPC, e por causa de eventuais problemas na Teoria da Relatividade Restrita. Aparentemente, a Teoria da Relatividade Restrita não representa o comportamento do universo de forma completa. Em outras palavras, o setor relativista — onde a velocidade da luz no vácuo é central — é representativo de parte do fenômeno natural. Os einsteins modernos podem muito bem questionar: Por que o fenômeno eletromagnético (as equações de Maxwell) é tão fundamental na caracterização da natureza? A Teoria da Relatividade Restrita foi formulada de modo a manter a invariância das equações de Maxwell e da velocidade da luz — uma onda eletromagnética — no vácuo, em todos os referenciais inerciais. Por outro lado, o universo é muito mais do que um fenômeno eletromagnético, como poderia questionar o nosso einstein moderno.

Einstein vive e remove todos os efeitos de fossilização que a mediocridade humana insiste em criar em todas as áreas do conhecimento.

Referências

Abramo, R. 2005, Leitor comenta artigo ‘Mancadas Einsteinianas’, artigo de Domingos S.L. Soares, JC e-mail 2718 (03 de março de 2005)

Assis, A.K.T. 1998, Mecånica Relacional, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, UNICAMP, Campinas (disponível na página eletrônica do autor em http://www.ifi.unicamp.br/~assis/Mecanica-Relacional.pdf)

Escobar, C.O. e Pleitez, V. 2001, Mecânica Relacional: A Propósito de uma Resenha, Revista Brasileira de Ensino de Física, 23, 260

Neves, M.C.D. 2005, Mitos e Mancadas Einsteinianas 1, JC e-mail 2723 (10 de março de 2005)

Neves, M.C.D. 2006a, Mitos e Mancadas Einsteinianos: Balanço Pessoal do Centenário e Resenha do Livro “Physics Before And After Einstein” (parte I), JC e-mail 2937 (16 de janeiro de 2006)

Neves, M.C.D. 2006b, Mitos e Mancadas Einsteinianos: Balanço Pessoal do Centenário e Resenha do Livro “Physics Before And After Einstein” (parte II), JC e-mail 2939 (18 de janeiro de 2006)

Neves, M.C.D. 2006c, Mitos e Mancadas Einsteinianos: Balanço Pessoal do Centenário e Resenha do Livro “Physics Before And After Einstein” (parte III), JC e-mail 2940 (19 de janeiro de 2006)

Overbye, D. 2001, Einstein in love: a scientific romance, Penguin Books, Nova York

Pais, A. 1995, Sutil é o Senhor...: a ciência e a vida de Albert Einstein, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro

Primack, J.R. 2004, Precision Cosmology, arXiv:astro-ph/0408359

Silva, M.B.E. 2009, Teorias Cosmológicas alternativas ao Modelo Padrão, Estudo Orientado, Departamento de Física, UFMG

Soares, D.S.L. 1999, O Balde de Newton e o Espaço Absoluto: Uma Resenha de Mecânica Relacional, de André Koch Torres Assis, CLECH, UNICAMP, (1998), 349p., Revista Brasileira de Ensino de Física, 21, 558

Soares, D.S.L. 2003, Sutil é o Senhor... Abraham Pais, http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/abpais/abpais.htm

Soares, D.S.L. 2005, Mancadas einsteinianas, JC e-mail 2717 (02 de março de 2005)

Soares, D.S.L. 2009, Uma pedra no caminho da Teoria da Relatividade Geral, http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/trg-pdr.pdf

Soares, D.S.L. 2012a, COSMOS:06jan12

Soares, D.S.L. 2012b, COSMOS:01fev12

Turner, M.S. 2002, Dark Matter and Dark Energy: The Critical Questions, arXiv:astro-ph/0207297



Leia outros artigos em http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/notices.htm.

Domingos Sávio de Lima Soares