SUTIL É O SENHOR... ABRAHAM PAIS

(Subtle is Abraham Pais...)




Domingos S.L. Soares

Departamento de Física, ICEx, UFMG -- C.P. 702
30161-970, Belo Horizonte -- Brazil
E-mail: dsoares@fisica.ufmg.br

27 de agosto de 2003

Resumo

Apresento um breve comentário sobre alguns aspectos do livro ``Sutil é o Senhor...'': a ciência e a vida de Albert Einstein, de Abraham Pais, editado pela Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1995, 654 páginas, ISBN 85-209-0631-1. Eu chamo a atenção para a existência de duas possíveis fontes de viés na interpretação biográfica.

Abstract

I comment shortly on some aspects of the book ``Sutil é o Senhor...'': a ciência e a vida de Albert Einstein, by Abraham Pais, edited by Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1995, 654 pages, ISBN 85-209-0631-1. I point out to the existence of two possible sources of bias in the biographical interpretation.


 

1. Introdução

Publicado originalmente em 1982, sob o título ``Subtle is the Lord...'': the science and the life of Albert Einstein, pela Oxford University Press, esta biografia tornou-se imediatamente obra de referência destacada, e louvada internacionalmente, para o conhecimento da vida do famoso cientista. A frase inicial do título foi proferida certa vez por Einstein, ``Sutil é o Senhor, mas não malicioso'' (Raffiniert ist der Herr Gott, aber boshaft ist er nicht, ver p. vi1, da edição Brasileira), ao se referir aos percalços encontrados na busca da realização do destino de sua vida: descobrir as leis da natureza.

A tradução foi realizada por Fernando Parente e Viriato Esteves, com revisão de César Benjamin. O trabalho realizado foi bom, inclusive nas traduções (ou propostas de traduções), para o Português, de termos técnicos ainda não usuais em nosso idioma. Nos casos em que os tradutores se defrontaram com dificuldades maiores (surpreendentemente, não foram muitos), o termo em Inglês é apresentado para confrontação com a tradução sugerida. A tradução não compromete de forma alguma o pleno entendimento da obra.

Reproduzo a seguir as primeiras linhas da orelha do livro, que dão uma ideia bastante boa e concisa da obra e de seu autor.

`` `A vida de Einstein chegou ao fim, exigindo-nos síntese.' Assim se expressou Wolfgang Pauli em meados da década de 1950 2, lançando um desafio que, quase trinta anos depois, seria assumido por Abraham Pais, especialmente capacitado para a enorme tarefa. Físico brilhante, hoje professor emérito da Rockefeller University, colaborador de Niels Bohr, J.R. Oppenheimer e do próprio Pauli, amigo e colega de Einstein durante nove anos no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton (EUA), Pais debruçou-se sobre depoimentos, cartas, artigos e textos nunca antes publicados para reconstruir em profundidade a trajetória pessoal e intelectual daquele que é, de longe, o maior cientista do século XX.''

A obra não é destinada de forma alguma ao público leigo, pelo elevado conteúdo técnico, mas trata-se de leitura obrigatória para todo profissional de Física, especialmente aqueles que se dedicam à pesquisa. Igualmente deve ser lida por todo estudante de Física que se encontre nos últimos semestres da graduação ou no início de seus estudos de pós-graduação.

Como contraposição aos elogios apresentados acima, farei alguns comentários. O propósito desta pequena nota é colocar para discussão alguns pontos de estranheza que me ocorreram ao ler a fascinante obra de Abraham Pais.
 

2. Quem é realmente Abraham Pais?

Apresentarei alguns dados sobre Abraham Pais, que aparecem no decorrer do seu próprio texto, e que fornecem a primeira caracterização do seu modo de atuar como biógrafo de Einstein.

Judeu e imigrante nos Estados Unidos, como Einstein, ambos receberam a cidadania norte-americana prestando juramento perante o mesmo juiz, Philip Forman, como faz questão de assinalar (p. 539).

O capítulo 17, A Teoria do Campo Unificado, pertencente à quarta parte do livro intitulada A Teoria da Relatividade Geral, sugere para aqueles, como eu, não familiarizados com o trabalho de pesquisa de Pais, qual é realmente a sua seara. A seção 17d, A relatividade e a geometria diferencial pós-Riemaniana, é puro tecnicismo, totalmente dispensável. Mas justiça seja feita: o próprio autor adverte o leitor para este acidente de percurso (p. 399).

Abraham Pais, se não amigo íntimo de Einstein, gozava de certas regalias no convívio com ele (p. 569). Era na completa acepção da palavra, um verdadeiro admirador de Albert Einstein, e este fato sem dúvida alguma reflete-se em sua elaboração da ciência e da vida pessoal de Einstein.

A primeira contraposição é um alerta para este fato: temos aqui um admirador escrevendo sobre o objeto de sua admiração, e isto não é um bom sinal quando se tem em mente a isenção na emissão de juízos de valor.

Para exemplificar este ponto pode-se citar a questão do princípio de Mach.

O físico e filósofo austíraco Ernst Mach (1838-1916) foi, entre outras coisas, um dos mais insistentes críticos do paradigma Newtoniano da mecânica. A massa inercial, conceito importante na formulação da dinâmica de Newton, recebe de Mach uma interpretação especialmente revolucionária. A inércia de um corpo não é uma propriedade intrínseca do mesmo, como o pressuposto Newtoniano, mas o resultado da interação deste corpo com o resto do universo. Esta afirmação ficou conhecida como princípio de Mach3. Na época da criação da teoria da relatividade geral havia a ideia de que o princípio de Mach deveria ser considerado como um requisito básico na construção de uma teoria satisfatória da gravitação, e Einstein pensava inicialmente desta forma. Após infrutíferas tentativas neste sentido acabou por desprezar esta ideia e propôs o abandono do princípio de Mach (p. 339-340) pois chegou à conclusão de que ele não constituía um princípio fundamental da natureza. Esta conclusão nunca foi bem justificada mas Pais coloca-se na posição confortável do discípulo que aceita sem maiores questionamentos a posição assumida pelo mestre.
 

3. Anti-semitismo e super-semitismo

Tão deplorável quanto o anti-semitismo é a posição diametralmente oposta, a que denominarei de super-semitismo. Propositadamente, não utilizo o termo filo-semitismo, preferido por alguns, na referência a atitudes simpáticas ao povo judeu. Caracterizo aqui o super-semitismo como um posicionamento filo-semita deliberadamente, e às vezes, inconscientemente parcial. Isto leva o super-semita a ignorar quaisquer fatos que de uma forma ou de outra venham a denegrir o imagem do povo judeu, tomada portanto como uma super-raça.

Abraham Pais assume nitidamente uma posição super-semita na discussão dos temas científicos no decorrer da obra. Esta impressão é causada pela pouca atenção dada a cientistas que não são judeus como Dirac, Heisenberg, Hubble, e outros, em momentos da vida científica de Einstein, que claramente exigiam um maior aprofundamento crítico. Particularmente Dirac, que na opinião de Einstein4, em relação à mecånica quåntica, ``foi quem, de modo mais admirável, expôs a ordem lógica desta teoria.''

No capítulo 29, intitulado Sobre tensores, um aparelho de audição e muitas outras coisas: os colaboradores de Einstein, que é um dos capítulos da oitava parte (Apêndices), omite-se inexplicadamente o nome de Bose. Ele é mencionado na seção 23b, mas deveria ter sido enumerado, como foram outros, neste capítulo final de síntese, mesmo não tendo sido co-autor, com Einstein, de nenhum artigo científico. Ninguém, que tenha conhecimento do desenvolvimento da Física do século XX, negaria o fato de que Einstein e Bose efetivamente realizaram uma contribuição conjunta para a mecânica quântica.

Neste mesmo capítulo, ao discorrer sobre a colaboração com o físico, também judeu, Paul Ehrenfest, Pais omite qualquer palavra sobre o fim trágico deste grande cientista, que à semelhança de Boltzmann, que fora o seu orientador de doutoramento, se suicidara. A impressão que fica, aqui e no tratamento de questões delicadas da vida pessoal de Einstein, é a de que Pais pretende preservar o leitor do conhecimento de situações constrangedoras relacionadas ao objeto de seu estudo.

Esta é a segunda contraposição.
 

4. Considerações finais

Tendo-se em mente as duas contraposições sugeridas acima, deve-se ler o tratado de Pais sobre Einstein com coração e mente atentos.

É, sem sombra de dúvida, uma obra lúcida sob muitos aspectos. Mencionarei, como ilustração, um exemplo desta lucidez. Trata-se da questão das ondas gravitacionais e do pulsar binário. Ao contrário do que muitas vezes se ouve (e se lê), o decaimento orbital do pulsar binário não é uma prova da existência das ondas preditas pela teoria da relatividade geral. Literalmente, escreve Pais (p. 331).

``Finalmente, como presente dos céus, nos surgiu o pulsar binário PSR 1913+16, `o primeiro sistema conhecido no qual a gravitação relativista pode ser utilizada como ferramenta prática para determinar paråmetros astrofísicos'. Este sistema oferece a possibilidade de se testar se efetivamente se verifica a previsão quantitativa da relatividade geral de uma variação no período provocada pela perda de energia resultante da radiação gravitacional quadripolar. Na GR95 foi comunicado que esta perda era de 1,04±0,13 vezes a previsão quadripolar. Este resultado não prova, evidentemente, a validade da fórmula quadripolar, nem diminui a necessidade de observar diretamente as ondas gravitacionais. Parece mais sério notar, contudo, que este resultado do pulsar binário fortalece a crença de que a fórmula quadripolar não pode estar muito longe da realidade e que não será vã a busca, pelos relativistas experimentais, das ondas gravitacionais.''

Para encerrar, eu gostaria de deixar claro que a intenção primordial do que foi exposto é despertar a atenção e a discussão em torno da admirável obra de Abraham Pais. Trata-se certamente de fonte rica de reflexão e aprendizado para todos aqueles que se dedicam à Física.


 

1 Ao longo do texto farei referência à edição Brasileira sempre na forma ``p. nr.'', onde nr é o número da página com textos relevantes para a discussão em foco. Volta.

2 Einstein faleceu, em conseqüência do rompimento de um aneurisma da aorta abdominal, em 18 de abril de 1955. Volta.

3 Existem outras formulações do princípio; o leitor interessado encontrará uma boa discussão das ideias de Mach no capítulo 6 do livro Mecânica Relacional, de André K.T. Assis, Editora Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, UNICAMP, 1998, p. 123.Volta.

4 Como vejo o mundo, Editora Nova Fronteira, 1981, p. 197. Volta.

5 Nona (ou décima, ver p. 318) conferência de uma série de congressos internacionais dedicados à relatividade geral. Volta.



Domingos Sávio de Lima Soares
27Aug2003