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Sobre a obra Velhas-Flodens Fiske [Peixes do Rio das Velhas]



Heraldo A. Britski




A monografia ictiofaunística Velhas-Flodens Fiske [Peixes do Rio das Velhas], de Christian Frederik Lütken (1875), é uma das poucas obras publicadas no século XIX que versa especificamente sobre uma bacia hidrográfica brasileira, tendo como base uma coleção relativamente grande de peixes. Escrita originalmente na língua mãe do autor, o dinamarquês, e contendo uma sinopse em latim, a obra sempre ofereceu dificuldades de leitura; sua tradução torna agora possível aos leitores de língua portuguesa conhecê-la no seu todo.

A história do ``Velhas-Flodens Fiske'' tem relação direta com a vinda para o Brasil, em 1833, de Peter Wilhelm Lund, dinamarquês que se radicou em Lagoa Santa, tornando-se conhecido pelo monumental trabalho sobre os fósseis dessa região, o que lhe valeu depois o cognome de Pai da Paleontologia Brasileira. Lund já realizava suas pesquisas no Brasil há mais de uma década quando Johannes Theodor Reinhardt, zoólogo do Museu Real de História Natural da Dinamarca, visitou-o pela primeira vez, no ano de 1847. Depois disso, porém, Reinhardt voltou à região de Lagoa Santa por mais dois períodos consecutivos (1850-1852 e 1854-1856) e, durante sua estada, reuniu uma valiosa coleção dos peixes da bacia do rio das Velhas. Lund também remeteu exemplares àquele museu e forneceu informações sobre os peixes da região, como pode ser constatado pela leitura da presente obra.

Como resultado de suas coletas, Reinhardt publicou alguns trabalhos taxonômicos sobre os peixes do Rio das Velhas, descrevendo as primeiras espécies, já no ano de 1849 (1851, apud Nielsen, 1974). Entretanto, segundo palavras do próprio Lütken, Reinhadt não se dispôs a empreender o trabalho monográfico sobre os peixes que coletara naquele rio, empreitada que foi assumida solitariamente por Lütken.

Antes do aparecimento do Velhas-Flodens Fiske (1875), os trabalhos pós-lineanos publicados por autores europeus sobre peixes do Rio São Francisco basearam-se fundamentalmente nas coleções realizadas por Saint Hilaire, Spix & Martius, Castelnau e Cumberland.

Auguste F.C.P. de Saint-Hilaire chegou ao Rio de Janeiro em junho de 1816; em suas viagens, passou pela Serra da Canastra nas cabeceiras do Rio São Francisco e, na seqüência, pelas cabeceiras do Rio das Velhas e do Paraopeba para, finalmente, navegar pelo Rio São Francisco entre Pacuí e Jequitaí. Os naturalistas bávaros Johan B. von Spix e Karl F.P. von Martius, que chegaram ao Brasil em 1817, estiveram na bacia do Rio São Francisco em diferentes ocasiões: primeiramente em Sabará e Caeté, depois em Montes Claros e Brasília de Minas, de onde cruzaram o Rio São Francisco e o Rio Carinhanha, atravessaram o grande rio de volta e se dirigiram a Salvador; dali seguiram em direção ao Piauí, cruzando mais uma vez o Rio São Francisco em Juazeiro. Francis L.N. de C. de L. Castelnau viajou pela região nos anos de 1843 e 1844, indo de Barbacena para Queluz (Queluzita), na bacia do Paraopeba, depois a Ouro Preto e em seguida para Itabirito e Curral del Rei (Belo Horizonte), na bacia do Rio das Velhas; dirigiu-se finalmente para Goiás, cruzando o rio São Francisco e passando por Mateus Leme e Pitangui (Papavero, 1971).

Ch. Cumberland coletou peixes exclusivamente no Rio Cipó, um dos afluentes do Rio das Velhas, e suas coleções foram enviadas ao Museu Britânico. Günther (1864), que estudou essas coleções, não forneceu a data das coletas nem o local exato de proveniência dos peixes. Reinhardt2 diz que, provavelmente, Cumberland os coletou na Fazenda Rotulo, perto da nascente do Rio Cipó.

O total de espécies descritas e mencionadas na literatura, coletadas por esses viajantes no Rio São Francisco, alcança cerca de 40. Considerando que Reinhardt coletou apenas no Rio das Velhas o total aproximado de 55 espécies, pode-se estimar como realmente são expressivas as coleções que reuniu em meados do século XIX, possibilitando um avanço notável no conhecimento dos peixes da bacia.

Mas, além da coleta e preparação dos espécimes, a circunstância de permanecer em Lagoa Santa por um período relativamente longo - e não de passagem pela região como ocorreu com os viajantes que o precederam - permitiu a Reinhardt registrar inúmeras e importantes observações sobre os peixes, as quais foram amplamente dadas a conhecer por Lütken nesta obra.

As descrições das espécies que Lütken apresenta neste Peixes do Rio das Velhas destacam-se pelo trabalho minucioso e cuidadoso, comparável àquele dos ictiólogos mais destacados que trabalharam com peixes brasileiros em meados do século XIX. Em suas descrições transparece a preocupação constante no sentido da exatidão na definição de cada um dos caracteres examinados. Em muitos casos, quando o material disponível é abundante, apresenta não apenas descrição detalhada dos adultos mas também dos jovens, enfatizando as diferenças entre eles em vários aspectos. Não raro, também as diferenças sexuais da espécie são descritas detalhadamente. Para quase todas as espécies, ele apresenta dados sobre o colorido em vida - derivados das anotações de Reinhardt -, fato que se reveste de grande valor quando se considera a escassez desses dados na maioria das descrições taxonômicas dos peixes brasileiros, especialmente as do século XIX.

Suas discussões são amplas, minuciosas e até exaustivas no sentido de definir, com a maior clareza possível, as diferenças entre as novas espécies que descreve e outras já descritas; e, quando trata de espécie já mencionada em outras bacias hidrográficas, esmera-se em definir as diferenças dos exemplares que teve em suas mãos dos exemplares estudados por outros autores.

Deve-se enfatizar também que o trabalho de Lütken nesta obra não se restringe à descrição minuciosa das espécies do Rio das Velhas. Seus comentários, em grande parte transcrições das anotações de campo de Reinhardt, envolvem os mais diversos aspectos referentes à biologia das espécies, incluindo observações sobre seu porte, dimorfismo sexual, hábitos alimentares, período de reprodução, características das gônadas, parasitismo, comportamentos diversos, inclusive migratórios e reprodutivos, distribuição, ecologia. Fornece também dados sobre pesca, valor econômico das espécies, nome vulgar de cada uma delas e faz ainda referências sobre lendas e contos de pescadores locais sobre hábitos, etc.

No Peixes do Rio das Velhas, 17 espécies são ilustradas de corpo inteiro em litogravuras, as quais incluem também três desenhos de vistas dorsais da parte anterior do corpo e outros detalhes da morfologia dessas espécies. Nas páginas do texto figuram também outros 17 desenhos de espécies de corpo inteiro e 20 outros referentes a detalhes anatômicos de caráter diverso. Trata-se, portanto, de uma obra amplamente ilustrada por desenhos preciosos, muitos de uma fidelidade ímpar e rara beleza.

Em razão disso tudo, esta tradução será de grande utilidade para os especialistas em taxonomia de peixes de água doce neotropicais, que até agora viam seu trabalho muito dificultado toda vez que necessitavam consultar a obra original, escrita numa língua pouco acessível. Pelo número de observações em vários campos da biologia dos peixes, a tradução será de utilidade também para os biólogos em geral e para todos os que se interessam pela história natural e mesmo para os que investigam a excitante história científica de nosso país no século XIX.




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Luiz Paulo Ribeiro Vaz 2002-05-21