próxima início prévia
Próxima: III. Sarapós (Gymnotini) Início: E. O grupo dos Prévia: 19. Serrasalmo (sensu strictu)

20. Myletes (Tometes) micans Rhdt.

Do Rio das Velhas e seu afluente Rio Taquaruçu, que deságua no primeiro um pouco ao norte de Lagoa Santa, Reinhardt trouxe dois exemplares de um Myletes com cerca de 13 polegadas de comprimento, os quais, ainda que pareçam pertencer a uma espécie da mesma subdivisão deste gênero, M. (Tometes) altipinnis Val., da qual St. Hilaire trouxe um exemplar de 15 polegadas do São Francisco e Cumberland enviou uma pele de 20 polegadas de comprimento do Rio Cipó, devem, porém, pertencer a uma espécie diferente daquela.

A primeira dificuldade que se encontra na determinação das espécies de Myletes é a questão não resolvida sobre as diferenças, com relação aos dentes, encontradas dentro deste gênero, ou seja, se elas expressam uma diferença de espécie ou de sexo. Ainda que o material de outras espécies de Myletes que pude utilizar não fosse grande nem muito adequado - 13 exemplares de 6 espécies, certamente todos jovens - vou adiantar uma revisão sobre as diferenças que encontrei nesse aspecto nestas formas de Myletes. O número de dentes é em essência sempre o mesmo: 5 na fileira externa e 2 na fileira interna em cada intermaxilar; 4-7 na fileira externa e 1 na fileira interna em cada lado da maxila inferior. Mas em algumas formas os dentes internos da maxila inferior são altos e pontudos, de modo que ultrapassam os da fileira externa e os dois dentes medianos da fila da frente da maxila superior são separados por um espaço, assim como existe um espaço perceptível entre as duas fileiras de dentes do intermaxilar, ainda que os internos tenham suas raízes bem próximas dos externos. Esta característica corresponde àquela que Müller e Troschel retrataram em ``Horæ ichthyologicæ'' (M. asterias, prancha X, fig. 2a), e que eu reencontrei nos exemplares de Myletes asterias e hypsauchen, bem como em um M. ellipticus, originários do Museu de Berlim. Ao contrário, em outras formas (por exemplo Myletes discoideus Kn.) não encontro qualquer espaço no meio entre os dentes mais da frente do intermaxilar, os internos destes ficam perto dos externos, e os dentes internos da maxila inferior são muito baixos, podendo somente ser considerados rudimentares; levando em conta tudo isso, os dentes nestas formas - que claramente correspondem ao gênero Tometes de Valenciennes e Myleus de Müller e Troschel (``Horæ ichthyoligicæ'' prancha XI, fig. 1a: Myleus setiger), considerando, como o fez Kner, que os últimos autores mencionados (e Valenciennes em parte) ignoraram (o que por si ó é altamente desculpável) os pequenos dentes internos da maxila inferior - em vez de serem mais comprimidos e cortantes, como nos primeiros mencionados e que seriam os verdadeiros Myletes, são mais grossos e mais parecidos com os dos primatas, mais adequados para esmagar. Apoiado em sua investigação sobre Myletes setiger, Kner considerou, na época, que esta diferença era uma diferença sexual, de forma que as fêmeas possuíam o primeiro tipo de dentição que descrevi e os machos o último (de acordo com as figuras de dentes de ambos os sexos em M. setiger, no trabalho de Kner sobre os Characini, loc. cit., prancha I, figs. 6a e 6b, junto com a revisão mais detalhada nas páginas 28 e 29). Apesar de ser difícil explicar por que o macho e a fêmea deveriam ter os tipos de dentição diferentes, devo reconhecer que tenho dois casos, que mais confirmam a opinião de Kner; um é que o Museu possui um exemplar adquirido do Museu de Berlim de ``Myletes Schomburgkii'' M. Tr. com o tipo de dentes mencionado por último, ainda que se pudesse supor, pela descrição original, que se tratasse do primeiro tipo mencionado; o outro é que, dos 5 exemplares mais jovens, aparentemente todos de uma única e mesma espécie (que eu considero ser M. rubripinnis), 4 possuem o último tipo de dentes descrito e 1 o primeiro. Mas, por outro lado, não se trata de uma hipótese que corresponda à espécie que vive no Rio das Velhas; ambos os exemplares disponíveis dessa espécie são fêmeas, entretanto elas possuem o tipo de dentes que, de acordo com Kner, deveria caracterizar os machos. Não preciso enfatizar o quão desejável seria obter o maior número possível de dados sobre Myletes com respeito a esta característica; mas não se pode ignorar que, mesmo que alguma diferença sexual apareça em certas espécies, não é obrigatório que apareça em todas as espécies - ou vice-versa, porque, mesmo que se possa provar que não existe tal diferença nesta ou naquela espécie, isto não quer dizer que ela não possa existir em outras164.

\begin{figure}\noindent{\epsfxsize =\hsize\epsfbox{PEIXE16.PS}}\end{figure}

As proporções do corpo em M. micans são as seguintes: a maior altura é contida um pouco mais de uma vez e meia no comprimento total, calculado até o ponto onde a cobertura de escamas termina, perto da raiz da nadadeira caudal; a relação é de, aproximadamente, 1:1,6, um pouco acima ou abaixo disso. O comprimento da cabeça (a estreita membrana do opérculo incluída) é contido 4 vezes e meia no comprimento total mencionado, mas menos de três vezes na maior altura, que se situa numa linha que vai do início da nadadeira dorsal até as nadadeiras ventrais e pela qual o peixe seria dividido em duas partes quase iguais, ou, em outras palavras: esta linha situa-se aproximadamente a igual distância da ponta do focinho e da raiz da nadadeira caudal. O olho situa-se quase no meio da superfície lateral da cabeça, e a igual distância da ponta do focinho e da borda posterior do opérculo; seu diâmetro é um quarto do comprimento da cabeça e a metade da distância existente entre eles (em linha reta através da testa muito curva). As narinas, que se separam por uma grande aba de pele, situam-se a meio caminho entre o olho e a ponta do focinho. A largura do opérculo verdadeiro (Operculare) é um quarto de sua altura. O número de dentes da parte de cima da boca é, como de costume, 5 na fileira exterior e 2 na interior de cada lado; na porção inferior da boca, 6 de cada lado além de 2 pequenos na fileira interna; estes, em um dos exemplares, são muito baixos, no outro, da altura dos dentes da primeira fileira, os quais diminuem em largura e principalmente em tamanho daquele situado na frente para o último da fileira que é muito pequeno; com exceção deste e de seu vizinho, cada um possui uma pequena cúspide mais baixa em seu lado externo, ao passo que o da frente é tricuspidado e sua cúspide lateral interna muito grande. Os dentes da fileira exterior (da frente) do intermaxilar são fortemente comprimidos; eles aumentam de largura em direção ao osso maxilar e os dois últimos de cada lado possuem uma cúspide lateral muito evidente; entre os dois da frente (os do meio da maxila) existe - o que normalmente não é comum nos Myletes que possuem em geral os mesmos tipos de dentes - um espaço muito grande e um menor entre o primeiro e o segundo. Os da segunda fileira são largos (de lado a lado), comprimidos, com superfície de mastigação plana e estão situados perto daqueles da fileira exterior, formando um V duplo ( $\bigwedge\!\!\bigwedge$) atrás deles. O perfil superior do corpo descreve um arco do início da nadadeira dorsal até o crânio, onde este se deprime um pouco acima do olho; o perfil ventral descreve um arco muito mais aberto do istmo até as nadadeiras ventrais, e continua daí, como uma linha um pouco inclinada, até o início da nadadeira anal, de modo que esse ponto fica um pouco mais baixo que a base das ventrais. A distância do início da nadadeira dorsal até o início da caudal é, em um dos exemplares, igual à distância do primeiro até a metade da depressão da testa acima do olho - no outro, é igual à distância da nadadeira dorsal até as narinas; por outro lado, a distância da raiz das nadadeiras ventrais até o início da caudal é, em ambos os exemplares, maior que a distância da primeira até a ponta do focinho. As nadadeiras ventrais situam-se abaixo, ou um pouco à frente, da parte mais anterior da nadadeira dorsal. O comprimento dessa nadadeira é igual ou um pouco mais curto que o da nadadeira anal, que, por sua vez, é igual ou um pouco menor que a metade da maior altura do corpo; sua altura à frente é, também, mais ou menos a mesma que a da anal e igual ou um pouco maior que o comprimento da cabeça; mas deste ponto mais alto, a borda da nadadeira dorsal abate-se progressivamente até o último raio, cujo comprimento é cerca de um terço do maior deles (o quinto), ao passo que os últimos raios da nadadeira anal (ou seja, aqueles da parte livre da cobertura de escamas) são somente a metade do comprimento do último raio da nadadeira dorsal; em um dos exemplares a borda da nadadeira anal é levemente arqueada. As nadadeiras peitorais são mais curtas que a cabeça, o comprimento das nadadeiras ventrais é a metade ou dois terços desta. A nadadeira caudal é profundamente bifurcada. O tamanho da nadadeira adiposa (em sua base) é menor que sua altura (paralelamente à direção que os raios teriam, se fossem desenvolvidos) e que a metade de sua distância até a nadadeira dorsal. O número de raios é: D.: 27-28 (4+23-24) (o mais anterior muito baixo); P.; 16; V.: 8; A.: 36-39 (3+33-36); C.: 5.17.5. A linha mediana dorsal da ponta da nuca até o espinho horizontal na base da nadadeira dorsal é uma faixa estreita nua (livre de escamas); ao longo da base da nadadeira dorsal forma-se uma margem, com limites um pouco sinuosos, de pequenas escamas. A linha lateral é quase reta, ou apenas leve e irregularmente sinuosa, embora se eleve um pouco à frente, acima das nadadeiras peitorais; na maioria de suas escamas vê-se um canal dividido em 2-4 ramos. Ao longo dessa linha, contam-se de 100 a 115 escamas - uma contagem precisa não é possível e nem todas essas escamas possuem o canal mencionado -, cerca de 35 na parte anterior do corpo, entre a linha lateral e a linha dorsal, e 30-33 até a linha ventral serrilhada, que conta com 46-47 espinhos, além de 6 de cada lado do profundo orifício da cloaca, em forma de fenda, onde o ânus e a papila genital se localizam. - As cores (de um peixe não totalmente fresco) são descritas por Reinhardt do seguinte modo: ``O dorso é azul-esverdeado, toda a parte superior do corpo (à exceção das nadadeiras) prateada (talvez o peixe vivo, coberto de muco, possua um fraco reflexo dourado), embora o brilho prateado fique mais pálido e esbranquiçado em direção ao ventre; a superfície superior da cabeça é da cor do dorso, o restante de brilho prateado; a íris é prateada; a nadadeira dorsal é cinza na base e na maior parte de sua extensão, mas em cima, em direção à borda, espalha-se um vermelho muito vivo que forma uma moldura de cerca de 8mm de largura. A nadadeira adiposa é marrom-amarelada com borda escura, a nadadeira caudal acinzentada na raiz e na maior parte de sua extensão, mas com uma moldura vermelha, que é mais estreita (5-6mm) em seu entalhe mediano, que fica um pouco mais larga em direção à ponta de seus lobos; a nadadeira anal é vermelho-sangue vivo, as nadadeiras ventrais brancas, e as peitorais branco-amareladas''.

A barriga, em todos os exemplares examinados por Reinhardt, estava cheia com restos de plantas. Esses exemplares lhe foram trazidos sob o nome de ``pacamão''.

Não passaria despercebido ao leitor o fato de os dentes, com suas abas muito características, lembrarem um pouco os do gênero Mylesinus; mas como encontrei também nítidos traços nesse sentido em outros Myletes (especialmente naqueles que mais possuem o aspecto de Tometes), estou mais inclinado a acreditar que, até agora, não se prestou atenção a essa característica e, além do mais, não encontrei motivo suficiente para considerar esta espécie como um gênero ou subgênero à parte, principalmente porque não pude contar com outros Myletes ou Tometes adultos na coleção. Também chamará a atenção que, ao propor a presente forma como uma nova espécie, surge a circunstância um tanto surpreendente de que no Rio Cipó e no Rio São Francisco ocorra uma espécie (Myletes altipinnis Val.) que se sabe não ocorrer no Rio das Velhas, que liga aqueles dois rios entre si e, por outro lado, que a espécie Myletes (M. micans n.) seja desconhecida em ambos aqueles rios. Aparece, novamente, a questão se M. micans Rhdt. e M. altipinnis Val. não poderiam ser fundidas. Comparando-se M. micans com as duas descrições e a ilustração mencionada de M. altipinnis, essa hipótese é imediatamente rejeitada, pois a forma da espécie de Valenciennes é muito mais alongada, a altura sendo dois quintos do comprimento total (calculado até o meio da borda um pouco entalhada da nadadeira caudal); esta proporção não concorda bem com o dado de Günther, segundo o qual a altura é a metade do comprimento total (até a nadadeira caudal), e ainda menos com M. micans, no qual a relação entre altura e comprimento (até o início da nadadeira caudal) é de 2:3. O comprimento da cabeça, referido como um pouco menor em M. altipinnis, está em bom acordo com esta diferença. Os dados referentes aos números de raios das nadadeiras e de dentes na serrilha do ventre talvez não fossem impedimento para tal identificação; mas o mais decisivo é que os raios de trás da nadadeira dorsal sejam dados como medindo dois terços do tamanho dos da frente (Val.) (de acordo com a ilustração eles são na realidade bem mais longos que aqueles), ou ``um pouco mais longos que os intermediários'' (Gthr.); também a nadadeira anal parece ter uma outra forma e, especialmente, ser muito mais alta na frente que em M. micans. Entretanto, há que se considerar que a descrição e a ilustração de Valenciennes foram feitas com base em um exemplar ``seco'' ( $\vbox{\vspace{-3pt}\epsfxsize =8pt\epsfbox{na.ps}}$ empalhado?) e as de Günther, do mesmo modo, em um exemplar empalhado, e considerar também que já tive em outras oportunidades a necessidade de ignorar diferenças em condições semelhantes, como por exemplo em Serrasalmo piraya Cuv. Mas a descrição desta última era 20-35 anos mais antiga, e me parece inadmissível deixar de lado discrepâncias como as indicadas, quando sua existência é sustentada pelas descrições de dois autores que concordam entre si em quase tudo.





próxima início prévia
Próxima: III. Sarapós (Gymnotini) Início: E. O grupo dos Prévia: 19. Serrasalmo (sensu strictu)
Luiz Paulo Ribeiro Vaz 2002-06-20