1.  INTRODUÇÃO

De uma estrela tem-se, geralmente, uma única fonte de informação: sua luz. Devido à opacidade do interior estelar, a luz emitida pela estrela possui quase sempre as características das camadas mais externas de sua superfície, a fotosfera.

Pode-se analisar esta luz, medindo sua magnitude, o fluxo integrado de radiação em uma determinada faixa de comprimentos de onda, através da fotometria. Pode-se também estudar o espectro estelar, a energia liberada em função do comprimento de onda, através da espectroscopia.

Mais da metade das estrelas na vizinhança do sistema solar são membros de sistemas múltiplos (Zeilik et al. , 1992). Alguns desses têm a inclinação de seus planos orbitais em torno de 90°, ficando os planos próximos ao plano de visada. Assim, ao se moverem em suas órbitas, as componentes se eclipsam periodicamente. Tratam-se de sistemas binários eclipsantes (SBE). Deles, faz-se fotometria, e obtêm-se curvas de luz, que são gráficos de diferença de magnitude aparente entre o sistema variável e uma estrela constante, em função do tempo. A partir das curvas de luz, pode-se estudar o comportamento dinåmico da órbita, através dos tempos de mínimo e variações do período orbital, e determinar paråmetros físicos orbitais e das estrelas componentes, como a inclinação orbital, os raios estelares e suas temperaturas, de forma relativa. Determinam-se também, em certos casos, coeficientes de escurecimento de bordo, coeficientes de reflexão e de brilho por gravidade, que são paråmetros que influenciam as curvas de luz e têm relação íntima com a estrutura das atmosferas estelares.

Muitas vezes, as componentes são brilhantes e semelhantes o suficiente para que as linhas espectrais das duas estrelas sejam detectáveis. Esses são sistemas binários espectroscópicos. À medida em que as estrelas se aproximam e se afastam de nós, orbitando em torno do centro de massa comum, ocorre o deslocamento Doppler de suas linhas espectrais. Desse deslocamento determinam-se as velocidades radiais das estrelas fase a fase e constroe-se a curva de velocidades radiais. Da curva obtém-se a razão das massas das componentes, bem como sua separação orbital. Obtém-se também, da análise das linhas espectrais, as velocidades rotacionais assim como a razão das luminosidades das estrelas que compõem o sistema.

Para a Astrofísica, são especialmente interessantes SBE cujas componentes são também binárias espectroscópicas. Com a análise fotométrica e espectroscópica conjunta desses sistemas é possivel determinar seus paråmetros absolutos (massa, raio, temperatura e composição química). Esses são dados essenciais para calibração e testes de modelos de formação, estrutura e evolução estelares. Entretanto a determinação dos elementos absolutos de sistemas binários cujas componentes sejam representativas para estudos de estrelas solitárias é difícil, e existem atualmente somente cerca de 45 sistemas resolvidos com erros da ordem de 1-2% nas massas e raios (Andersen, 1991), de forma que a busca de determinações precisas é plenamente justificada.

O objetivo deste trabalho é o estudo do sistema triplo V906 Sco (HD 162724, V = 5.m96, P = 2.d78), dando continuidade ao projeto de determinação de elementos absolutos de sistemas binários que vem sendo desenvolvido no grupo de astrofísica (Cunha, 1990; Vieira, 1991; Myrrha, 1991). V906 Sco possui tipo espectral B9V e é o segundo membro mais brilhante do aglomerado NGC 6475 (M7) (Leung e Schneider, 1975) o que o torna especialmente importante, pois a determinação de seus paråmetros físicos possibilita comparações com métodos independentes de determinação de idade. Possivelmente é um caso um pouco raro de binária visual, onde uma das componentes é por sua vez uma binária eclipsante. Segundo Eggen (1981), em 1950 o sistema era observado como uma dupla visual com separação de 0.1 segundos de arco, o que hoje não ocorre. Isso indica que o período do par visual não deve ser muito grande (algumas centenas de anos).

V906 Sco é bastante citada em estudos feitos sobre NGC 6475 por se tratar de uma estrela brilhante. Sua variabilidade foi descoberta por Koelbloed (1959) em um estudo fotométrico de M7. Em 1961, Feinstein fez espectroscopia de várias estrelas de NGC 6475 e confirmou que V906 Sco era um sistema binário, verificando a variação de suas velocidades radiais.

Abt et al. (1970) determinaram uma solução espectroscópica a partir de 10 espectros de dispersão 62 Å/mm (6) e 39 Å/mm (4), e como o erro nas medidas de velocidade desse sistema era muito grande (57 km/s), houve a previsão errônea de uma órbita bastante excêntrica (e=0.18 ±0.12). Nesta solução a componente primária foi considerada a mais massiva e a estrela com maior velocidade de rotação, o oposto do que foi determinado no atual trabalho. Isso ocorreu devido a uma inversão das componentes feita pelos autores. Como não havia ainda nenhum tempo de mínimo determinado para o sistema, foi atribuída à estrela mais massiva a denominação de primária. Deve-se salientar que em estudos de SBE com componentes normais, ainda nas primeiras fases da seqüência principal, a componente mais massiva é também a de temperatura mais elevada e, portanto, com maior quantidade de energia emitida por unidade de área e de tempo. Ao ser eclipsada, a componente de temperatura mais alta provoca o mínimo mais profundo na curva de luz. Então, existe a tradição em estudos de SBE de se chamar a componente cujo eclipse provoca o mínimo mais profundo de estrela primária, o que em alguns casos, como o de V906 Sco, gera um conflito de definições. A menos que esteja claro no texto, vamos seguir a tradição de fotometristas de curvas de luz de SBE, e denominar primária a componente que sofre eclipse na fase zero, isto é, aquela que está mais afastada do observador durante o mínimo mais profundo da curva de luz.

Leung e Schneider (1975) fizeram » 2000 observações fotométricas UBV de V906 Sco. O período, inicialmente determinado por Abt, foi recalculado, e obteve-se o primeiro tempo de mínimo do sistema. Dentro dos erros das observações, o mínimo secundário ocorria na fase 0.5, ou seja, a órbita foi considerada circular, em vez de excêntrica, como derivada da espectroscopia disponível até então. Uma solução fotométrica foi obtida usando o modelo de Wilson-Devinney, sendo o sistema considerado separado e a razão de massas novamente calculada como sendo menor do que 1, ou seja a componente primária mais massiva do que a secundária (seguindo a tradição espectroscopista). É interessante notar que mesmo tendo determinado boas efemérides fotométricas, Leung e Schneider (1975) não perceberam a inversão feita por Abt entre as duas componentes e foram traídos pela confusão de nomenclatura descrita acima.

Snowden (1975) realizou um estudo fotométrico (uvby Hb) bastante detalhado sobre M7 que incluiu V906 Sco entre outras 130 estrelas do aglomerado. Os dados deste trabalho (índices de cor e magnitudes absolutas) relativos a cada estrela, assim como os valores determinados para o avermelhamento interestelar, a diståncia e a idade do aglomerado foram amplamente usados e criticados em trabalhos subsequentes.

Nessas análises, entretanto, o sistema foi tratado como duplo, apesar da informação dele ter sido binário visual (Van den Bos, 1950). Foi somente em 1979 que Lacy comunicou a presença de uma terceira componente, ao fazer espectroscopia do sistema com detetor Reticon e verificar que a linha 4481Å de MgII se desdobrava em três entre os eclipses. Desde então, restavam a ser refeitas tanto a solução fotométrica, levando em consideração a terceira luz, quanto a espectroscópica com medidas de boa resolução.

No capítulo 2 deste trabalho é feita a análise espectroscópica do sistema. São descritos a obtenção dos dados e os processos de redução utilizados. Através da análise dos espectros foram obtidos os paråmetros espectroscópicos do sistema, além da velocidade de rotação das três componentes e a razão de suas luminosidades.

No capítulo 3 é feita a análise dos dados fotométricos. Foram determinadas novas efemérides para V906 Sco e recalculada a magnitude visual aparente. A solução dos paråmetros fotométricos foi alcançada através do ajuste dos modelos de síntese de curva de luz aos dados fotométricos e espectroscópicos.

No capítulo 4 são discutidos os paråmetros absolutos determinados e suas implicações junto a modelos de evolução. Os valores obtidos para diståncia e idade das estrelas são comparados com os disponíveis na literatura sobre o aglomerado.

No capítulo 5 são apresentadas as conclusões sobre o trabalho realizado.