O encurvamento da luz segundo Soldner


Domingos Soares

03 de novembro de 2014



Resumo

O alemão Johann Soldner calculou em 1801 o encurvamento da trajetória da luz de uma estrela distante relativamente a um observador na Terra. Nisto ele precedeu em mais de 100 anos à mesma questão, proposta no contexto da Teoria da Relatividade Geral. Discuto vários aspectos relacionados ao trabalho de Soldner, entre eles, um possível lapso cometido em seus cálculos e a existência de um precursor de seu próprio trabalho pioneiro.



1. Introdução

Em 1801, o físico, matemático, astrônomo e geodesista alemão Johann Georg von Soldner (1776-1833) publicou um artigo científico no qual ele calcula o encurvamento — ou deflexão — da trajetória da luz devido à influência gravitacional de um corpo qualquer. Ele aplicou o seu resultado para a influência gravitacional da Terra sobre a luz emitida por uma estrela distante. A sua intenção era verificar se a deflexão da trajetória da luz era grande o suficiente para ocasionar alteração apreciável na determinação da posição da estrela. Soldner era familiar com outros efeitos que deveriam ser considerados nesta determinação, tais como a aberração estelar e a refração atmosférica, daí a sua preocupação. A deflexão da luz pela Terra resultou desprezível, ou seja, incapaz de alterar as medidas das coordenadas estelares a partir de um observatório terrestre.

Como um subproduto de seu trabalho, ele calculou o encurvamento da luz sob a influência do Sol, tendo sido neste aspecto o precursor de uma série de cálculos semelhantes posteriores. O encurvamento gravitacional da trajetória da luz foi o primeiro teste observacional da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein (1879-1955), cuja previsão era o dobro do cálculo newtoniano, como o realizado por Soldner. A previsão relativista foi proposta mais de 100 anos depois do cálculo de Soldner (mais detalhes em Soares 2014). Neste aspecto, a realização de Soldner foi bastante original.

Veremos, na próxima seção, que Soldner teve, ele mesmo, um precursor, na pessoa do físico e químico britânico — nascido na França — Henry Cavendish (1731-1810), conhecido por ter determinado experimentalmente o valor da constante da gravitação universal. Os cálculos de Cavendish não foram, no entanto, publicados, tendo sido encontrados posteriormente entre os seus manuscritos.

O meu propósito principal aqui é discutir uma afirmação textual do historiador da ciência inglês John D. North (1934-2008), encontrada em seu enciclopédico e aclamado tratado sobre a história da cosmologia intitulado The Measure of the Universe (North 1990, publicado originalmente em 1965). Lemos à página 68 da edição de 1990:

“J. Soldner in 1801 had actually calculated the extent of the [light] deflexion. Had he not made a slip in his working, he would have obtained the value 0.84, and there is thus a clear conflict between the classical and the later Einsteinian accounts.”

“J. Soldner em 1801 tinha na verdade calculado o valor da deflexão [da luz]. Se ele não tivesse cometido um lapso em seu trabalho, ele teria obtido o valor de 0,84, e há portanto um conflito claro entre o cálculo clássico e o último cálculo einsteiniano.”

(Os grifos são meus; o valor mais preciso da deflexão newtoniana é 0,875)

O primeiro cálculo de Einstein feito em 1910 era igual ao resultado clássico; o seu último cálculo, mencionado por North, de 1915, leva em conta a curvatura do espaço na vizinhança do Sol, e resulta em exatamente duas vezes o cálculo clássico, ou seja, 1,75 (ver eqs. 1 e 2 de Soares 2005). Eu argumento na seção 3 sobre o putativo lapso atribuído por North a Soldner. Finalizo com algumas considerações adicionais.

2. Soldner e Cavendish

Soldner é o precursor dos cálculos modernos do encurvamento gravitacional da luz. Mas esta não é toda a história. O físico canadense, radicado nos Estados Unidos, Clifford M. Will (1946-) publicou um artigo intitulado Henry Cavendish, Johann von Soldner, and the deflection of light (Will 1988), no qual somos apresentados ao precursor do precursor do encurvamento da luz: o físico Henry Cavendish. Este, no entanto, não se preocupou em tornar público os seus cálculos. Houvera publicado os seus resultados e a sua posição na questão da deflexão da luz teria sido mais ilustre.

O sumário do artigo de Will mostra a questão de forma clara, como se lê abaixo (os grifos são meus).

“The gravitational deflection of light based on Newtonian theory and the corpuscular model of light was calculated, but never published, around 1784 by Henry Cavendish, almost 20 years earlier than the first published calculation by Johann Georg von Soldner. The two results are slightly different because, while Cavendish treated a light ray emmited from infinity, von Soldner treated a light ray emitted from the surface of the gravitating body. At the first order of approximation, they agree with each other; both are one-half the value predicted by general relativity and confirmed by experiment.”

“A deflexão gravitacional da luz baseada na teoria newtoniana e no modelo corpuscular da luz foi calculada, mas nunca publicada, por volta de 1784 por Henry Cavendish, quase 20 anos antes do primeiro cálculo publicado, de Johann Georg von Soldner. Os dois resultados são ligeiramente diferentes porque, enquanto Cavendish tratou de um raio de luz emitido do infinito, von Soldner tratou de um raio de luz emitido da superfície do corpo defletor. Em primeira aproximação, eles concordam um com o outro; ambos dão a metade do valor predito pela relatividade geral e confirmado pela experiência.”

Como vemos, Cavendish trata diretamente do caso do encurvamento da luz, exatamente como é considerado nos tratamentos modernos, ou seja, o caso da luz emitida por um objeto distante, por exemplo, uma estrela e que sofre uma deflexão gravitacional na trajetória tangente à borda do corpo defletor. Soldner faz o cálculo da trajetória inversa, ou seja, a luz parte tangencialmente da superfície do corpo para o infinito. Esta situação física é para Soldner apenas uma conveniência geométrica para a aplicação das leis de Newton. Na verdade, o seu interesse é na trajetória direta, i.e., vindo do infinito para a superfície do corpo, mas utiliza a disposição inversa apenas por conveniência de cálculo. O artigo de Soldner foi publicado em alemão, mas uma tradução para o inglês está apresentada em Jaki (1978). Este trabalho também discute em algum detalhe o contexto histórico-científico existente à época do trabalho de Soldner.

A Figura 1 é uma reprodução da única figura de Will (1988). Nela vemos as duas situações descritas acima. O ângulo δ é o ângulo que a trajetória inicial da luz faz com a tangente ao ponto A (i.e., o eixo y). O ângulo total de deflexão é 2×δ. A trajetória da luz é um ramo de uma hipérbole, a qual representa uma órbita não ligada gravitacionalmente ao corpo defletor, ou seja, o corpúsculo luminoso vem do infinito e vai para o infinito após sofrer a deflexão. A formulação geométrica de Soldner possui apenas metade do ramo, pois a luz parte do ponto A e vai para o infinito. Will (1988, seção II) mostra que as duas situações são, em primeira aproximação, equivalentes.

Para efeito de comparação, a Figura 2 mostra o encurvamento da luz causada por um corpo de massa muito grande (corpo esférico de mesmo raio solar e com ≅500.000 vezes a massa do Sol). A órbita é também livre e portanto hiperbólica (o ângulo de deflexão é proporcional à razão M/R cf. Soares 2005, eq. 2).


Figura 1

O encurvamento da luz: a linha sólida grossa representa a trajetória da luz passando pela borda de um corpo esférico de raio R. Soldner supõe que a luz parte do ponto A, propagando-se na direção positiva do eixo y, e Cavendish que a luz vem de uma fonte no infinito, passa por A e prossegue na direção oposta (Figura 1 de Will 1988). A deflexão total da trajetória da luz é igual a 2×δ.




Figura 2

A trajetória hiperbólica da luz emitida por uma estrela distante quando a massa do corpo defletor é muito grande, a qual vale aqui cerca de 500 mil vezes a massa do Sol; a deflexão newtoniana total é neste caso o ângulo δN (mais detalhes em Soares 2005).


Tanto o cálculo de Cavendish quanto o de Soldner levam ao valor conhecido da deflexão newtoniana, i.e., 2×δ=0,875 segundo de arco. Trata-se de um ângulo muito pequeno, próximo dos limites da detectabilidade com os instrumentos da época de Soldner. Para se ter uma ideia da pequenez deste ângulo basta notar que o ângulo subtendido pela Lua cheia é igual a aproximadamente 0,5 grau, ou 30 minutos de arco, ou ainda 1.800 segundos de arco. Outro exemplo: o diâmetro aparente de uma estrela no céu, devido aos efeitos da turbulência na atmosfera terrestre, corresponde a um ângulo de cerca de 1 a 2 segundos de arco, conforme à qualidade do céu.

3. Cometeu Soldner um lapso?

Na seção anterior mostrei que tanto Soldner quanto Cavendish obtiveram o valor correto do encurvamento gravitacional da luz. Para o caso de uma trajetória rasante ao Sol, a deflexão é dada, em radianos, pelo ângulo δ=2GM/Rc2, onde M e R são a massa e o raio do Sol, G é a contante da gravitação universal e c é a velocidade da luz no vácuo (e.g., Soares 2005, eq. 2). Inserindo os valores conhecidos atualmente de todos as constantes e parâmetros astronômicos na equação para δ, obtemos o valor já mencionado anteriormente δ=0,875 segundo de arco (=4,2421×10-6 radiano).

Soldner calcula o valor do ângulo de deflexão da luz pelo Sol ao final de seu artigo, depois de ter feito o cálculo que lhe interessava de início, qual seja, o efeito do encurvamento da luz pela Terra. Este é o ângulo δ da Fig. 1 aqui apresentada. A deflexão pelo Sol, a ser observada da Terra, será o dobro do ângulo δ mostrado na Fig. 1.

Para o caso da Terra, o observador está no ponto A e observa a deflexão causada pela própria Terra. No caso do Sol, o observador estará também na Terra, obviamente, e detectará um ângulo 2×δ, que é a deflexão causada pelo Sol. Soldner encontrou 0,84 segundo de arco no caso do Sol (ver antepenúltima página do artigo de Soldner em Jaki 1978, pág. 947). É claro que este valor difere ligeiramente do valor atual devido ao melhor conhecimento que temos de M, R, G e c, os parâmetros envolvidos.

Então, não há qualquer lapso nos cálculos de Soldner.

Cabe, de qualquer forma, a pergunta: por que North menciona a existência de um lapso nos cálculos de Soldner?

Em Jaki (1978) podemos encontrar indícios da resposta a esta pergunta. À pág. 938, Jaki menciona que Soldner escreve a expressão da força gravitacional (por unidade de massa) do corpúsculo de luz no ponto A (ver Fig. 1) como sendo o dobro do valor real. Isto realmente ocorre, como se pode ver nas equações 1 e 2 de Soldner (Jaki 1978, pág. 941). Aparece nestas equações o termo 2g/r2, quando deveria ser g/r2 (g≡GM, na nomenclatura de Soldner e r é o raio do corpo de massa M). Jaki (pág. 938) sugere os motivos que levaram Soldner a duplicar o valor da força (o ângulo ω de Soldner, que aparece a seguir, é o mesmo ângulo δ da Fig. 1 aqui apresentada):

Therefore one must perhaps assume that behind Soldner's use of 2g was his realization that the bending of light around a celestial body would be , that is, ω of the diagram and its mirror image.

Portanto pode-se supor talvez que por trás do uso de 2g por Soldner estava a sua compreensão de que o encurvamento da luz ao redor de um corpo celeste seria , isto é, ω do diagrama e a sua imagem especular.

O diagrama de Soldner, como a Fig.1, apresenta apenas a metade do ramo de hipérbole; a outra metade é uma imagem especular da primeira relativamente ao eixo x da figura. Assim, também na Fig. 1, a deflexão total é 2×δ.

Soldner calcula as deflexões para a Terra e para o Sol. No caso da Terra, o observador está no ponto A da Fig. 1 e o ângulo é δ. No caso do Sol, como salientado anteriormente, o ângulo é 2×δ. Os cálculos estão descritos em detalhes na pág. 941 de Jaki (1978). Tive o cuidado de repetir os cálculos de Soldner com a sua expressão para tg(ω) (≅ω, para pequenos ângulos), mostrada à pág. 946 de Jaki (1978; note que na expressão de Soldner v corresponde à velocidade da luz). Verifiquei que Soldner usou 2g tanto para a Terra quanto para o Sol. Este é o único lapso de Soldner: ele deveria ter usado g para o cálculo da deflexão da luz estelar diretamente observada na Terra. Mas este lapso não tem relação com a deflexão da luz pelo Sol, a qual foi calculada corretamente.

Desta forma, resta ainda saber o que queria dizer North com a sua menção de um lapso, pois ele refere-se à deflexão solar e não à deflexão provocada pela Terra. No trecho citado na seção 1, North afirma que Soldner ”… teria obtido o valor de 0,84″, quando, de fato, Soldner obteve 0,84″ para a deflexão solar (veja seção 2). É, portanto, mais apropriado afirmar que North, este sim, tenha cometido um lapso nesta questão.

4. Considerações finais

Em 1783 o clérigo católico e filósofo natural inglês John Michell (1724-1793) enviou a Cavendish un artigo, onde ele apresenta um método para se medir a massa de estrelas através da detecção da redução da velocidade da luz pelo efeito da gravitação newtoniana sobre os corpúsculos de luz em sua viagem da estrela para a Terra. Este artigo e a discussão subsequente entre os dois muito provavelmente levou Cavendish a considerar a questão do encurvamento gravitacional da trajetória da luz (Will 1988, pág. 413). Neste mesmo artigo Michell levanta a possibilidade de que uma estrela suficientemente densa poderia ser capaz de frear completamente a luz por ela emitida e ser totalmente invisível para um observador externo. Desta forma, John Michell é considerado como o precursor da ideia moderna do buraco negro.

Independentemente de Michell, em 1796 o matemático e astrônomo francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827) fez o mesmo cálculo do freamento total da luz e da consequente invisibilidade da estrela emissora. Foi este trabalho de Laplace que, por sua vez, inspirou Soldner ao cálculo do encurvamento da luz. Os trabalhos de Laplace eram conhecidos de Soldner como se pode depreender de sua citação da obra do sábio francês intitulada Traité de mécanique céleste (cf. Jaki 1978, pág. 941).

O encurvamento da luz discutido por Soldner e Cavendish é o fundamento básico do fenômeno das lentes gravitacionais. Um corpo de massa M e raio R funciona, para pequenos valores de M/R, como uma lente refratora convergente da óptica convencional. O encurvamento da luz numa lente côncava é decorrente da refração da luz ao atravessar o material da lente; o encurvamento gravitacional é produzido pelo efeito da gravitação sobre a trajetória da luz.

As lentes gravitacionais são observadas abundantemente no universo e têm importância tanto para a consideração de fenômenos locais quanto para o contexto cosmológico (mais detalhes em Santos 2010 e nas referências bibliográficas e eletrônicas lá mencionadas).

Nota adicionada em 2021

O artigo, do historiador alemão Tilman Sauer, intitulado “Soldner, Einstein, Gravitational Light Deflection and Factors of Two” (Sauer 2021, Soares 2021) confirma de forma muito mais detalhada que realmente Soldner não cometera lapso algum em seus cálculos.

Além disso, Sauer chama a atenção para alguns detalhes idiossincrásicos da época de Soldner e de erros tipográficos no texto, e que dificultam a obtenção do resultado final da deflexão. Por exemplo, a unidade de tempo é o chamado “segundo decimal” definido como 24 horas/100.000 = 86.400/100.000 segundo. Os erros de impressão referem-se à ausência de fatores 2, daí o título do artigo. A propósito, ele chama a atenção para o fato de que no artigo de Einstein de 1916, com o cálculo da deflexão relativista, havia um erro de impressão, exatamente de um fator 2. O erro foi reconhecido pelo próprio Einstein; a expressão para a deflexão impressa não foi a usada para o cálculo da deflexão, no entanto. Posteriormente o erro de impressão foi corrigido.

Referências

S.L. Jaki, 1978, Johann Georg von Soldner and the Gravitational Bending of Light, with an English Translation of the Essay on It Published in 1801, Foundations of Physics 8 (11/12), 927

J.D. North, 1990, The Measure of the Universe, Dover Publications, Inc., New York.

F. Santos, 2010, Lentes Gravitacionais (www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/1-10/lentes-gravitacionais-fernando.pdf)

T. Sauer, 2021, Soldner, Einstein, Gravitational Light Deflection and Factors of Two (www.researchgate.net/publication/352297444)

D. Soares, 2005, Newtonian gravitational deflection of light revisited (arxiv.org/abs/physics/0508030)

D. Soares, 2014, Visita ao Museu do Eclipse em Sobral (www.fisica.ufmg.br/~dsoares/sobral/meclips.htm)

D. Soares, 2021, COSMOS:15dez21 (lilith.fisica.ufmg.br/~dsoares/cosmos/21/cosmos17.htm)

C.M. Will, 1988, Henry Cavendish, Johann von Soldner, and the deflection of light, American Journal of Physics 56 (5), 413



Atualização: 15dez21


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