O paradigma da luz cansada revisitado

[Versão atualizada publicada em Cadernos de Astronomia, v. 2, n. 1, p. 121 (2021)]


Domingos Soares

01 de janeiro de 2014



Resumo

Discuto alguns aspectos do chamado “paradigma da luz cansada”, o qual representa uma das possíveis explicações para a dependência do desvio espectral para o vermelho de uma fonte cósmica distante com a sua distância até o observador. A mais popular representação fenomenológica do paradigma é apresentada em algum detalhe. Além disso, sendo o processo físico responsável pelo hipotético fenômeno ainda desconhecido, apresento também uma sugestão para a sua descoberta.




1. Introdução

Em 1929, no volume 15 dos Anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, foram publicados dois artigos cujos resultados reverberam até aos dias de hoje.

No primeiro, na página 168, Edwin Hubble (1889-1953) apresenta a relação que ficou conhecida como a “lei de Hubble”, i.e, a relação linear entre velocidades e distâncias de galáxias distantes (Soares 2009a). Este trabalho é uma fonte profícua de discussões (e.g., Assis et al. 2008).

Na página 773, aparece o segundo, um artigo do astrônomo Fritz Zwicky (1898–1974). Búlgaro de nascimento, cidadão suíço e radicado nos Estados Unidos de 1925 até sua morte, Zwicky era conhecido por ser uma personalidade forte e controversa. E no trabalho em questão, já no início, ele cita o artigo de Hubble e apresenta uma alternativa às ideias de expansão do universo que já se levantavam como explicação para a lei de Hubble. Ele inventa a hipótese que ficou conhecida como o “paradigma da luz cansada”.

Em seu artigo, Hubble obtém, na realidade, uma relação entre desvios para o vermelho z e distâncias. Provisoriamente, Hubble converte os desvios para o vermelho em velocidades utilizando a expressão matemática do efeito Doppler v = cz, onde c é a velocidade da luz no vácuo. Zwicky, apropriadamente, raciocina em termos de desvios para o vermelho e não velocidades. Ele propõe a hipótese de que a luz ao “viajar” da fonte distante (uma galáxia, por exemplo) progressivamente perde energia. Ou seja, a luz se “cansa”. A luz é caracterizada por uma frequência ν e por um comprimento de onda λ = c/ν. O seu quantum de energia, o fóton, possui energia E = hν, sendo h a constante de Planck. Se a energia diminui pela fadiga da viagem, isto significa uma diminuição em ν e, consequentemente, um aumento em seu comprimento de onda λ pois λ é inversamente proporcional a ν. Portanto, quanto maior a distância da fonte maior será o aumento de λ, em outras palavras, maior o desvio para o vermelho. Lembremos que, no espectro visível, que vai do violeta ao vermelho, o violeta possui o menor comprimento de onda e o vermelho o maior. Daí a nomenclatura “desvio para o vermelho” para se referir a um aumento de comprimento de onda, seja na faixa do visível ou não.

Zwicky vai além de propor a hipótese — o paradigma — e propõe também um mecanismo físico para a fadiga da luz em sua viagem. O mecanismo que ele sugere é, em suas palavras, “uma espécie de análogo gravitacional do efeito Compton” (“a sort of gravitational analogue of the Compton effect”, Zwicky 1929, p. 773). Ele supõe que o fóton perde energia devido ao arrasto gravitacional (atrito dinâmico) durante sua viagem da fonte ao observador, arrasto este causado pela matéria existente ao longo da trajetória. O mecanismo de Zwicky possui atualmente apenas interesse histórico.

Um detalhe fundamental na busca para o mecanismo físico do paradigma é a necessidade de que o mecanismo proposto não cause o espalhamento da luz. Em geral, o espalhamento da luz é seletivo, i.e., dependente do comprimento de onda e neste caso as imagens de fontes extensas distantes seriam “borradas”, como se estivessem fora de foco, o que não é observado (e.g., Harrison 2000, p. 312).

O importante na contribuição de Zwicky é a ideia por trás do paradigma. A luz perde energia (por um processo físico ainda desconhecido) durante a sua trajetória desde a fonte distante até o observador. O desvio para o vermelho será portanto tanto maior quanto maior for a distância até a fonte de luz e assim esta possibilidade seria uma alternativa para se explicar a lei de Hubble. Consequentemente, o modelo de um universo em expansão poderia ser dispensado, o que seria conveniente, já que este modelo encontra-se em sérias dificuldades para se estabelecer (ver, por exemplo, Soares 2009b).

Apresento, na próxima seção, uma expressão matemática bastante popular para o paradigma da luz cansada. Deve-se ressaltar que discutirei apenas a expressão matemática e não o possível mecanismo responsável por ela. Discuto também o roteiro proposto por Soares (2009a) para a descoberta deste mecanismo. Na última seção faço algumas considerações adicionais.

2. Uma descrição instrumental da luz cansada

Antes de discutir a luz cansada, apresentarei duas descrições alternativas para a dependência do desvio para o vermelho z com a distância r, as quais servirão para demarcar o posicionamento da luz cansada no espaço dos parâmetros relevantes z e r.

A primeira delas é a relação observacional conhecida como ``lei de Hubble". A figura 1 de Hubble (1929) mostra a relação linear velocidade–distância para as nebulosas extragalácticas (hoje denominadas galáxias). Esta relação é expressa matematicamente como v=Hor, onde v é a velocidade associada à galáxia (por meio de v=cz), r é a sua distância e Ho é a chamada “constante de Hubble”. Na verdade, o que Hubble mede é o desvio para o vermelho z. A transformação v=cz supõe implicitamente a adoção do efeito Doppler para explicar a origem dos desvios para o vermelho. Hubble tem plena consciência disto, como ele afirma, dois anos depois, em outro local (Hubble e Humason 1931, p. 73):

“The quantities actually observed in the present investigation are redshifts and apparent magnitudes. (…) The fact that the redshifts are expressed on a scale of velocities is incidental; for the present purpose they might as well be expressed as dλ/λ.”
(Note que dλ/λ é a própria definição do desvio para o vermelho z. Incidentalmente, o artigo de Hubble e Humason de 1931 possui o título The Velocity-Distance Relation among Extra-Galactic Nebulae enquanto que o artigo de Hubble de 1929 intitula-se A Relation between Distance and Radial Velocity among Extra-Galactic Nebulae, ou seja, ambos tratam do mesmo problema; o artigo com Humason constitui-se numa versão mais detalhada além de conter novas observações, estendendo a faixa de distâncias.)

A relação v=Hor mais a “interpretação incidental” v=cz (cf. Hubble e Humason 1931 citados acima) leva à seguinte expressão para a função z(r):

. (1)

A segunda é uma relação teórica originada de uma das soluções da Teoria da Relatividade Geral, a saber, as soluções de Friedmann (Soares 2013, seção 4.2). O Modelo Padrão da Cosmologia é baseado nestas soluções (ver detalhes em Viglioni e Soares 2011). Existem três modelos clássicos de Friedmann, dependendo da densidade de matéria do modelo de universo. Se a densidade do universo for igual à densidade crítica de Friedmann temos o modelo crítico, o qual possui geometria espacial euclidiana. Este modelo é, dos três, aquele que possui a descrição matemática mais simples (ver, por exemplo, a eq. 2 de Viglioni e Soares 2011). A função z(r) para o modelo de Friedmann crítico é dada por (de Souza 2004, eq. 3.16, López-Corredoira 2013, eq. A8):

, (2)

onde r é a distância comóvel até a fonte. Esta expressão reduz-se à eq. 1 para Hor/2c ≪ 1 (r ≪ 8 Gpc, para Ho=72 km/s Mpc-1, cf. Soares 2009c), com o auxílio da expansão em série de potências do binômio de Newton (1 + x)n = 1 + nx/1! + n(n-1)x2/2! + …, tomando-se apenas os dois primeiros termos.

Para obtenção da função z(r) para a luz cansada, frente ao desconhecimento de seu mecanismo físico, podemos utilizar uma definição instrumental do paradigma. A mais popular é (López-Corredoira 2013, item 6, apêndice A, Assis e Neves 2013, eq. 2 com dt=dr/c):

, (3)

a qual nos diz que, em termos infinitesimais, a diminuição relativa da energia da radiação é proporcional à distância percorrida. Esta equação deve ser integrada para se obter a energia Eo do fóton observado, o qual foi emitido, com energia E, pela fonte localizada em r = 0:

Expressando a energia em termos do comprimento de onda da radiação λ e com a definição de desvio para vermelho z, chegamos à expressão matemática de z(r) correspondente à descrição instrumental dada pela eq. 3:

, (4)

a qual, novamente, reduz-se à eq. 1 para Hor/c ≪ 1 (r ≪ 4 Gpc), com o auxílio da expansão em série da função exponencial ex = 1 + x/1! + x2/2! + …, tomando-se apenas os dois primeiros termos. A eq. 4 é a mesma eq. A24 de López-Corredoira (2013).

A figura 1 mostra as três funções z(r) dadas pelas eqs. 1, 2 e 4. Os eixos coordenados estão em escalas arbitrárias. Vale a pena ressaltar que o modelo de luz cansada situa-se exatamente entre a lei de Hubble e o modelo de expansão do espaço.




Figura 1

A função z(r) para os modelos representados pelas eqs. 1, 2 e 4. O modelo
“Friedmann crítico” (ou plano; ver Viglioni e Soares 2011) é também conhecido
como modelo de “Einstein-de Sitter”. Todos convergem para uma função linear
para r ≪ 1. A escala do eixo das abscissas r está em unidades de c/Ho=4,2 Gpc.


Resta agora uma importante questão. Qual é o mecanismo ou processo físico responsável pela luz cansada? Encontrar tal mecanismo significa também encontrar o mecanismo físico responsável pela lei de Hubble (eq. 1). Por este motivo Soares (2009a) denominou este mecanismo de “efeito Hubble” e apresentou um programa heurístico para a sua descoberta. As evidências experimentais constantes deste programa são as seguintes (Soares 2009a, seção 3):

O mecanismo físico que satisfizer estas imposições observacionais poderá ou não ser compatível com a descrição instrumental representada pela eq. 3 já que ela é apenas uma hipótese de trabalho.

3. Considerações finais

A ideia da luz cansada surgiu para servir de alternativa à explicação dos desvios para o vermelho como sendo originários da expansão do espaço — que, a propósito, é matematicamente indistinguível do efeito Doppler para pequenos desvios para o vermelho (Soares 2012). Mas no final das contas, a expansão do espaço pode até mesmo ser considerada como um dos processos físicos aceitáveis para a explicação da “fadiga” da luz ao viajar da fonte para o observador na Terra. Harrison (2000), à p. 315, cita, neste contexto, a afirmação do astrofísico francês Evry Schatzman (1920–2010), Para qualquer um que não aceita a expansão do universo, o desvio para o vermelho das linhas espectrais permanece como um fenômeno físico importante mas completamente inexplicável., e comenta:

Notemos que os desvios para o vermelho da luz cansada e os desvios para o vermelho da expansão têm muito em comum. Diferentemente do efeito Doppler, ambos consistem de um paulatino deslocamento em direção à extremidade vermelha do espectro à medida que a luz atravessa vastas regiões do espaço. Pode-se mesmo com justiça chamar o desvio para o vermelho da expansão uma teoria de luz cansada. Os raios de luz são progressivamente roubados de energia e tornam-se fatigados pela expansão do universo. Ironicamente todas as dificuldades da teoria da luz cansada são afastadas pela mudança de seu nome e pela atribuição da fadiga à expansão: temos fadiga mas não espalhamento; (…)

Formalmente, nada impede, por exemplo, que o modelo de Friedmann crítico (eq. 2) seja adotado como o mecanismo físico para a luz cansada. E se este for o caso, como mencionado no final da seção anterior, ele não precisa obedecer exatamente à descrição instrumental expressa pela eq. 3. E é exatamente o que ocorreria, como ilustra a figura 1. De qualquer forma, este não é o processo físico procurado, porque o que se pretende é uma alternativa aos modelos de expansão, devido à inadequação dos mesmos (cf. Soares 2009b).

Referências

H. Arp, O Universo Vermelho. Desvios para o Vermelho, Cosmologia e Ciência Acadêmica (Editora Perspectiva, São Paulo, 2001).

A.K.T. Assis, M.C.D. Neves, O desvio para o vermelho revisitado, in: O. Freire Jr. e S. Carneiro (orgs.); Ciência, Filosofia e Política: Uma Homenagem a Fernando Bunchaft (EDUFBA, Salvador, 2013), pp. 53-69 (http://www.ifi.unicamp.br/~assis/Assis-Neves(2013).pdf).

A.K.T. Assis, M.C.D. Neves, D.S.L. Soares, A cosmologia de Hubble: De um universo finito em expansão a um universo infinito no espaço e no tempo, in: M.C.D. Neves e J.A.P. Silva (Editores), Evoluções e Revoluções: O Mundo em Transição (Editora Massoni e LCV Edições, Maringá, 2008), pp. 199-221 (http://www.ifi.unicamp.br/~assis/Cosmologia-de-Hubble.pdf).

E. Harrison, Cosmology, The Science of the Universe (Cambridge University Press, Cambridge, 2000).

E.P. Hubble, Proceedings of the National Academy of Sciences 15, 168 (1929).

E.P. Hubble, M.L. Humason, Astrophysical Journal 74, 43 (1931).

M. López-Corredoira, arXiv:1312.0003 [astro-ph.CO] (2013).

D. Soares, O efeito Hubble (http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/efhub.pdf, 2009a).

D. Soares, Uma pedra no caminho da Teoria da Relatividade Geral (http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/trg-pdr.pdf, 2009b).

D. Soares, A idade do universo, a constante de Hubble e a expansão acelerada (http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ageunv/idadeunv.pdf, 2009c).

D. Soares, Universo relativista: expansão no espaço ou do espaço? (http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/expn/expn.htm, 2012).

D. Soares, Os fundamentos físico-matemáticos da cosmologia relativista (http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/353302.pdf, 2013).

R.E. de Souza, Introdução à Cosmologia (EDUSP, São Paulo, 2004).

W.G. Tifft, Astrophysics and Space Science, 285, 429 (2003).

A. Viglioni, D. Soares, Observações sobre as soluções clássicas da equação de Friedmann (http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/334702.pdf, 2011).

F. Zwicky, Proceedings of the National Academy of Sciences 15, 773 (1929).



Atualização: 01fev21


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