Padre Lemaître e a expansão do universo


Domingos Soares

07 de janeiro de 2013



Vamos falar um pouco mais sobre padre Georges Lemaître (1894-1966) e a questão da expansão do universo.

Antes, porém, um pouco sobre Lemaître. Em 1922, o cosmólogo russo Alexander Friedmann (1888-1925) apresentou um modelo cosmológico relativista que levava à ideia de um universo em evolução a partir de um estado inicial de altíssima densidade, se não infinita — uma singularidade. A ideia causou pouco impacto até que, alguns anos depois, Georges Lemaître aparece com a sua investigação, independente de Friedmann, de um universo relativista também dinâmico e que evoluía de um estado inicial de alta densidade, o qual ele denominou de Átomo Primitivo. O cosmólogo inglês Edward Harrison (1919-2007), em seu Cosmology, edição de 2000, à pág. 413, afirma que, pelo fato de Lemaître ser um padre, alguns cosmólogos contemporâneos olhavam o Átomo Primitivo com reservas e consideravam a teoria de Lemaître como um amálgama de ciência e religião. Esta pecha também caiu sobre a teoria que sucedeu o Átomo Primitivo, qual seja, a teoria do “Estrondão Quente” (Hot Big-Bang), sendo um dos seus principais detratores o astrofísico e cosmólogo inglês Fred Hoyle (1915-2001).

Volto, então, à polêmica sobre a suposta “expansão do universo”, motivado pela leitura de um artigo, relativamente interessante, do físico (do estado sólido) irlandês (de Dublin) Cormac O’Raifeartaigh. O artigo intitula-se “The contribution of VM Slipher to the discovery of the expanding universe”, no qual, a pretexto de reivindicar uma posição mais nobre para o espectroscopista estadunidense Vesto Slipher (1875-1969) no panteão mundial da cosmologia, O’Raifeartaigh faz um apanhado geral da cosmologia relativista moderna. E que, como disse, é relativamente interessante: possui generalizações equivocadas mas sínteses até certo ponto aceitáveis.

O artigo está em http://arxiv.org/abs/1212.5499, e na página 8, no penúltimo parágrafo, há uma discussão sobre a “lei de Hubble”, em que O’Raifeartaigh fala sobre as sugestões de se mudar o nome da lei para “lei de Hubble-Lemaître” ou mesmo “lei de Lemaître”. Esta história já é nossa conhecida (ver, por exemplo, COSMOS:14nov11).

Relembremos: Lemaître publicou, em 1927, num periódico científico belga (Annales de la Société Scientifique de Bruxelles), um artigo, escrito em francês, no qual ele apresenta um modelo de universo relativista, em expansão. Lemaître faz um cálculo preliminar da constante de expansão (a futura constante de Hubble), utilizando dados observacionais de velocidade e distância existentes na época. Hubble publicaria a sua análise de velocidades e distâncias de galáxias em 1929 — dois anos depois, portanto —, onde apresenta o seu famoso diagrama v×d e o cálculo da constante de expansão. Em 1931, aparece uma tradução para o inglês do artigo de padre Lemaître no prestigioso periódico inglês Monthly Notices of the Royal Astronomical Society (MNRAS). Nesta tradução, o cálculo da taxa de expansão não aparece. Muita especulação foi feita sobre isto — quem censurara o texto com o objetivo de excluir o cálculo? —, até que se descobriu (ver, em COSMOS:14nov11, o artigo de Mario Livio, astrônomo do Space Telescope science Institute, Estados Unidos) ter sido o próprio Lemaître que fizera a tradução de seu artigo para o inglês, e que ele próprio houvera omitido a passagem em questão.

Pois bem, o irlandês cita uma afirmação do próprio Lemaître, em uma carta, que acompanha o artigo de 1931, em que ele diz que “I do not think it is advisable to reprint the provisional discussion of radial velocities which is clearly of no actual interest”. E muitos anos depois, em 1952, Lemaître, recorda o caso, com a seguinte afirmação, que mostrarei em francês, inglês e em minha versão para o português:

“Naturellement, avant la découverte et l'étude des amas des nebuleuses, il ne pouvait être question d'établir la loi de Hubble.”
“Naturally, before the discovery and study of the clusters of nebulae, it was not possible to establish Hubble's law.”
“Naturalmente que, antes da descoberta dos aglomerados de galáxias, não era possível se formular a lei de Hubble.”

Por que não era de “interesse real” (actual interest) a publicação da discussão da taxa de expansão em MNRAS? A afirmação posterior feita por Lemaître, em 1952, indica a sua resposta: como a existência das galáxias ainda não era um fato completamente estabelecido, não era oportuno, ou relevante, a discussão de sua taxa de expansão.

Vejo dois problemas nesta resposta. Primeiro, por que a discussão era relevante para os Annales belga mas não para o MNRAS? Segundo, a questão da existência das galáxias já vinha sendo discutida, de formas objetiva e científica, desde, pelo menos, 1920, quando, em abril daquele ano, ocorreu nos Estados Unidos o famoso Great Debate. Também chamado “Debate Shapley–Curtis”, o Grande Debate foi uma discussão pública, bastante importante e divulgada na época, entre os renomados astrônomos Harlow Shapley (1885-1972) e Heber Curtis (1872-1942), a respeito da natureza das nebulosas espirais, em última instância, a respeito das dimensões do universo. Curtis defendia que as nebulosas espirais eram galáxias independentes e, consequentemente, defendia um universo de enormes dimensões, e Shapley defendia a posição contrária. Este debate não resolveu a questão, que só viria a ser resolvida por Edwin Hubble (1889-1953), cuja pesquisa sobre o tema foi publicada numa sequência de três artigos sobre galáxias do Grupo Local: NGC 6822 (galáxia de Barnard, em 1925), M33 (galáxia do Triângulo, em 1926) e M31 (galáxia de Andrômeda, em 1929). Esta pesquisa está magistral e claramente documentada no livro de Hubble The Realm of the Nebulae, de 1936, nos capítulos IV (Distances of Nebulae) e VI (The Local Group). Ou seja, já em 1925, as galáxias eram uma realidade cientificamente comprovada (veja, por exemplo, o artigo sobre NGC 6822 em Astrophysical Journal, vol. 62, pág. 409).

Então, por que Lemaître evitou a polêmica na versão inglesa de 1931? A resposta é simples: Lemaître, por assim dizer, vendeu a sua alma! — o que, convenhamos, não fica bem, nem para um cidadão comum e muito menos para um membro de uma instituição religiosa.

Vamos tratar agora da natureza da venda.

O personagem principal é o astrofísico inglês Arthur Eddington, o qual é uma das mais influentes — se não a mais influente — personalidades científicas da época. Eddington era amigo e admirador de Hubble e foi o orientador de Lemaître, em seus estudos iniciais de astronomia em Cambridge durante 1923 e 1924. (A seguir ele partiria para os Estados Unidos, onde realizaria o seu doutoramento sob a orientação de Harlow Shapley no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.) Lemaître, em sua ânsia secular por pertencer aos quadros da Royal Astronomical Society, e sabendo da influência que Eddington teria nesta empreitada, evitou o conflito com Hubble a respeito da primazia sobre o cálculo da “taxa de expansão”. Hubble já havia expressado o seu desejo a Eddington de que as questões relativas ao diagrama “velocidade” – distância deveriam ser consideradas como uma obra do Observatório de Monte Wilson — em outras palavras, dele e de seus colaboradores imediatos. (E, conceitualmente, de fato e de direito foi, conforme mostram todos os registros científicos históricos, se analisados objetivamente.)

Esta é, portanto, a natureza da venda. Alguns detalhes comprobatórios desta hipótese estão no Post Scriptum de Cosmos:14nov11. E como afirma Mario Livio, no artigo mencionado acima, em 12 de maio de 1939, o padre Georges Lemaître foi eleito membro da Royal Astronomical Society. E mais, em 1953, foi o primeiro a ser agraciado com a Medalha Eddington, desta instituição, pelas suas importantes contribuições científicas (for investigations of outstanding merit in theoretical astrophysics, cf. R.A.S. Eddington Medal).

Vejamos agora mais um argumento contrário à utilização do nome de Lemaître na identificação da famosa lei da cosmologia. Padre Lemaître, de certa forma, desprezou a importância da fenomenologia expressa na lei e, portanto, não deve de forma alguma receber qualquer crédito em sua nomeação. Surpreendentemente, podemos encontrar apoio para esta posição em uma fonte distante da cosmologia, a saber, no pensamento do grande naturalista Charles Darwin (1809-1882), que, como veremos, concordaria comigo nesta questão.

Em um trecho da mais importante edição de sua autobiografia — aquela anotada por sua neta Nora Barlow — encontrei um comentário de Darwin, em que ele descarta a sua primazia em determinada descoberta em favor daqueles que melhor a expressaram. Segue o texto em inglês e em seguida a minha versão para o português. A referência à sua obra máxima “A Origem das Espécies” é feita pela menção à “Origin” (em português, “Origem”).

“Hardly any point gave me so much satisfaction when I was at work on the Origin, as the explanation of the wide difference in many classes between the embryo and the adult animal, and of the close resemblance of embryos within the same class. No notice of this point was taken, as far as I remember, in the early reviews of the Origin, and I recollect expressing my surprise on this head in a letter to Asa Gray. Within late years several reviewers have given the whole credit of the idea to Fritz Müller and Häckel, who undoubtedly have worked it out much more fully and in some respects more correctly than I did. I had materials for a whole chapter on the subject, and I ought to have made my discussion longer; for it is clear that I failed to impress my readers; and he who succeeds in doing so deserves, in my opinion, all the credit.
“Dificilmente nenhum ponto me deu tanta satisfação quando eu trabalhei na Origem, quanto à explicação da enorme diferença em muitas classes entre o embrião e o animal adulto, e da grande semelhança de embriões dentro da mesma classe. Nenhuma atenção foi dada a este ponto, pelo que eu me recordo, nas revisões iniciais da Origem, e eu me lembro de expressar a minha surpresa sobre este assunto em uma carta a Asa Gray. No decorrer dos últimos anos vários revisores deram o crédito total da ideia a Fritz Müller e a Häckel, que sem dúvida alguma desenvolveram a ideia muito mais completamente e em alguns aspectos mais corretamente do que eu. Eu tinha material para um capítulo inteiro sobre o assunto, e eu devia ter estendido a minha discussão; pois está claro que eu fracassei em impressionar aos meus leitores; e aquele que teve sucesso nesta tarefa merece, em minha opinião, todo o crédito.
Hubble impressionou de fato os seus leitores. Padre Lemaître não. (Os sublinhados são meus.)

Já pareceu outra pessoa sugerindo que a lei deveria se chamar “lei de Hubble-Lemaître-Slipher”… Vejam em Reasons in favor of a Hubble-Lemaitre-Slipher's (HLS) law. Agora, se for para colocar no nome da lei todos os que colaboraram para a sua formulação, eu sugiro mais um, a saber, “lei de Hubble-Lemaître-Slipher-al-Khwarizmi”, porque não seria possível a formulação da lei sem a extraordinária contribuição de Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi para os fundamentos da álgebra e do conceito de números.

Epílogo

A mudança do nome da lei de Hubble pode ser vista ainda sob outro ponto de vista. A relação empírica entre desvio para o vermelho e magnitude aparente é um fato observacional. Isto é o que diz respeito ao trabalho de Hubble. O trabalho de Lemaître está relacionado com a relação teórica entre velocidade de recessão e distância (cf. Redshifts versus paradigm shifts; against renaming Hubble's Law). A relação empírica está estabelecida em bases firmes, enquanto a relação teórica ainda é uma afirmação hipotética. A moção da IAU de 2018, para a mudança do nome da lei de Hubble, produz o resultado inconveniente e enganoso de igualar uma relação verdadeiramente inquestionável (a lei de Hubble) a uma relação teórica claramente questionável, já que a cosmologia relativista moderna possui muitas suposições desconhecidas (energia escura, matéria escura não bariônica, matéria escura bariônica, etc.).

Agradecimento – O epílogo resultou de trocas de mensagens em um grupo de discussão de A Cosmology Group, um sítio mantido por Louis Marmet no endereço http://cosmology.info/. Agradeço as contribuições de Eric Lerner e Louis Marmet, os quais chamaram a minha atenção para o argumento exposto acima.



Atualização: 03ago21


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