A face do deus pagão da cosmologia moderna


Domingos Soares

04 de abril de 2013



Resumo

Apresento as observações das anisotropias da Radiação de Fundo de Micro-ondas obtidas pelos observatórios espaciais COBE, WMAP e Planck.




Um corpo, ou um sistema material qualquer, em equilíbrio térmico é caracterizado por uma mesma temperatura em todos os seus pontos. A radiação emitida nestas circunstâncias possui um espectro específico, o qual é descrito pela “lei de radiação de Planck”. Este é o espectro da radiação emitida por uma entidade física denominada “corpo negro”. A Radiação de Fundo de Micro-ondas (RFM), observada uniformemente por toda a esfera celeste, possui estas características. O espectro da RFM é, portanto, um espectro de um corpo negro. De acordo com o Modelo Padrão da Cosmologia (MPC), a RFM foi emitida por um plasma em equilíbrio térmico à temperatura de bilhões de kelvins, quando o universo era bastante jovem. À medida que o universo se expandiu, a temperatura associada à radiação diminuiu, preservando, no entanto, as suas características espectrais de corpo negro (veja mais detalhes em A RFM e o espectro de corpo negro).

Mas o MPC não suporta uma RFM totalmente uniforme, com uma temperatura exatamente a mesma em todos os pontos. Era necessário que o plasma primordial contivesse algumas flutuações de densidade, pequeninas que fossem, para que mais tarde na evolução do universo pudessem evoluir, através de instabilidades gravitacionais, para o colapso, com a consequente formação de estrelas, planetas, galáxias, nós e outras estruturas cósmicas. Em 1990, a equipe do observatório espacial COBE (Cosmic Background Explorer) divulgou os seus resultados, entre eles, o extraordinário espectro de corpo negro da RFM (veja Fig. 1, no artigo Espectro de potência da Radiação de Fundo de Micro-ondas), e as, nunca vistas antes, pequeníssimas flutuações associadas à RFM. Minúsculas que fossem — cerca de 1 parte em 100.000 — elas eram essenciais para a cosmologia padrão. E o alvoroço na comunidade do MPC foi total. É aqui que aparece a chamada “face de deus”.

“They have found the Holy Grail of cosmology”.
Michael Turner, Universidade de Chicago

“Well, if you are a religious person, it's like seeing the face of God”.
George Smoot, Universidade da California, Berkeley

Ambas as citações foram extraídas de A Different Approach to Cosmology, de Fred Hoyle, Geoffrey Burbidge e Jayant Narlikar, de 2000, página viii. George Smoot, um dos responsáveis pelo COBE, foi também um dos agraciados com o prêmio Nobel de Física de 2006, exatamente por este trabalho (veja, a propósito, o meu comentário sobre o prêmio de 2006 no JC e-mail).

A tal “face de deus” está representada na Fig. 1 abaixo, na imagem do alto (COBE). A cor azul (vermelha) representa temperatura em falta (excesso), relativamente a 2,74 K, que é a temperatura média da RFM. Estas flutuações correspondem a cerca de ±0,00001 K, como dito acima, e estão todas dentro das barras de erro que aparecem na Fig.1 do artigo Espectro de potência da Radiação de Fundo de Micro-ondas. Estas são as famosas “anisotropias da RFM”.

As anisotropias do COBE tinham pouca resolução angular, da ordem de 10 graus, ou seja, o COBE não conseguia ver flutuações em escalas angulares menores do que este ângulo. O WMAP melhorou bastante a resolução, para menos do que 1 grau. As anisotropias do WMAP estão mostradas logo a seguir na figura. O Planck melhorou ainda mais a resolução angular. A maioria de seus instrumentos tem resolução menor do que 10 minutos de arco, o que se reflete na riqueza de detalhes, mostradas no painel inferior, das anisotropias do Planck.



Figura 1

O mapa das anisotropias da RFM observadas pelo COBE (no alto), WMAP (no meio) e Planck. A celebrada
“face de deus” é a imagem do COBE. As flutuações para mais e para menos em torno de 2,74 K são representadas
pelas diferentes cores. A esfera celeste é projetada numa área elíptica utilizando a chamada “projeção de Mollweide”,
especialmente conhecida pelo seu uso na produção de planisférios terrestres. Créditos das figuras: equipes do COBE,
WMAP e Planck.


Em 2008 (veja COSMOS:16jun08), a equipe do WMAP produziu, para divulgação pública, um cartão do tipo postal com uma face holográfica. Nesta face, o cartão apresentava as anisotropias do COBE e do WMAP, que se alternavam, ao se mudar o ângulo de visão da imagem. No outro lado do cartão havia uma breve descrição dos “dogmas” do MPC. Vejam as duas faces do cartão abaixo.



Figura 2

Comparação entre as anisotropias observadas pelo COBE e pelo WMAP, evidenciando o enorme aumento em resolução angular atingido pelo WMAP.
Os painéis represetam a frente e o verso de um cartão promocional, tipo postal, confeccionado e distribuído pelo WMAP em 2008. O texto no painel
inferior descreve os “dogmas” consagrados do MPC. Créditos das figuras: equipes do COBE e do WMAP.


E o alvoroço continua. A Agência Espacial Européia (ESA) aclamou as observações do Planck, publicadas recentemente, como sendo um mapa da “aurora dos tempos” (dawn of time).

Que podem ser tempos turbulentos para o MPC, evidenciados, por exemplo, pelos problemas da assimetria hemisférica das anisotropias e da persistência da anisotropia anômala quadrupolar.

Vamos aguardar, sem nunca esquecer que o MPC, até o momento, é pouco mais do que ficção científica, pois possui muitas suposições básicas não comprovadas experimentalmente.


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