A Falácia da Independência


Domingos Soares

16 de fevereiro de 2017


Cosmologia moderna, o encadeamento incerto de especulação
a especulação com o objetivo de demonstrar especulação.

Let it Bang, Chronicles of Modern Cosmology — D. Soares

Certamente não devemos menosprezar a evidência dos fatos experimentais
em favor dos sonhos e das vãs imaginações de nosso devaneio pessoal.


Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, Livro III — I. Newton, 1687


Resumo

A literatura científica registra os anos de 1998 e 1999 como aqueles em que dois grupos de pesquisa independentes descobriram que a expansão do universo passou a se acelerar em épocas cósmicas recentes. Apresento argumentos em favor da falácia desta independência.



 

1. Introdução

A inspiração para a presente discussão veio-me de um texto do grande físico teórico estadunidense John Archibald Wheeler (1911-2008). Além de competente teórico, Wheeler é conhecido pela sua enorme capacidade de formação de pesquisadores e de transmissão do conhecimento em sua especialidade, em outras palavras, pela sua enorme capacidade didática.

Todo estudante de física, ao enxergar os primeiros lampejos em seus estudos, aproxima-se irremediavelmente de outro grande físico, o também norte-americano Richard Philips Feynman (1918-1988). Nós físicos, professores e estudantes, já tivemos um dia em mãos um dos livros de física básica de Feynman e nos surpreendemos com a sua facilidade para nos despertar a curiosidade e a descoberta. Wheeler merece também este lugar no caminho de todo estudante de física. A propósito, Wheeler foi o orientador de doutorado de Feynman. Em sua tese foram plantadas as sementes que o levariam ao prêmio Nobel de física em 1965.

Wheeler e seus colaboradores escreveram inúmeros livros didáticos, especialmente sobre as teorias da relatividade especial e geral. Em um destes livros é que encontrei algo interessante.

Vamos então à história de A Falácia da Independência.

2. A “descoberta” da expansão acelerada

É corriqueira a afirmação de que a descoberta da expansão acelerada do universo (detalhes na seção 1 de Universo do Estrondão Quente) foi feita “independentemente” por dois grupos de pesquisa.

Um dos grupos, 19 pesquisadores liderados por A. Riess, relatou a suposta descoberta no artigo Observational Evidence from Supernovae for an Accelerating Universe and a Cosmological Constant, publicado no influente periódico científico norte-americano The Astronomical Journal, em setembro de 1998.

O outro grupo, S. Perlmutter e 31 outros autores, relataram as suas descobertas em Measurements of Omega and Lambda from 42 High-Redshift Supernovae, publicado no também influente The Astrophysical Journal, em junho de 1999.

Discutirei aqui brevemente os resultados dos trabalhos dos grupos de Riess e Perlmutter baseando-me em um comentário de John Wheeler intitulado Accelerating Expansion of the Universe?, que aparece na página G-20 do livro Exploring Black Holes, Introduction to General Relativity, de E.F. Taylor e J.A. Wheeler, publicado em 2000.

Wheeler apresenta as duas figuras principais dos artigos de Riess et al. e de Perlmutter et al. Estas figuras estão na figura 1 abaixo. Elas são uma das muitas maneiras de se apresentar o chamado “diagrama de Hubble”, i.e., a representação gráfica da expansão do universo diretamente a partir dos dados observacionais. No eixo vertical aparece o brilho das fontes, representado por uma escala de magnitude, e no eixo horizontal o desvio para o vermelho z do espectro da fonte. As fontes utilizadas por ambos os trabalhos foram um tipo especial de supernovas, as de “Tipo Ia”. Wheeler diz: “Acredita-se que a supernova de Tipo Ia ocorre quando uma estrela anã branca gradualmente aumenta de massa, proveniente de uma grande companheira binária, finalmente atingindo uma massa na qual ela se torna instável e explode em uma supernova.” Acredita-se também que o processo leva a explosões bastante padronizadas e desta forma as supernovas Tipo Ia podem ser usadas como “velas padrão”, ou seja, fontes de luz que possuem os mesmos brilhos intrínsecos. Assim elas podem ser usadas para se medir a distância até as galáxias hospedeiras e, além do mais, por serem muito brilhantes, as distâncias investigadas podem ser muito grandes.

A magnitude nos fornece a distância d até a fonte e o desvio z nos fornece a velocidade v da fonte. A “lei de Hubble” expressa uma relação entre elas:

v = Hod, (1)

onde Ho é o parâmetro ou constante de Hubble.

Para a discussão dos resultados de Riess e Perlmutter devemos colocar a lei de Hubble em termos puramente observacionais da forma como eles apresentam os seus resultados. Para isto fazemos duas substituições. Primeiro, usamos o efeito Doppler, que estabelece que a radiação eletromagnética emitida por uma fonte que se afasta de nós com velocidade v apresenta um desvio espectral para o vermelho z. O efeito é dado pela expressão

z = v/c , (2)

onde c é a velocidade da luz. Segundo, usamos a a definição de magnitude absoluta M para obtermos a distância d. M é dada por (veja K.S. Oliveira Filho & M.F. Oliveira Saraiva):

m − M = 5 log d − 5. (3)

A magnitude absoluta M é uma medida do brilho intrínseco da fonte e a magnitude aparente m é uma medida de seu brilho aparente ou observado.

Efetuando o logaritmo nas eqs. 1 e 2 e substituindo na eq. 3 obtemos a expressão da lei de Hubble em termos puramente observacionais:

m − M = 5log z + constante. (4)

Esta equação é válida somente para z<<1 (mais detalhes sobre esta dedução estão em O efeito Hubble).

Podemos agora olhar com mais atenção a figura 1.



Figura 1

À esquerda, o diagrama de Hubble para supernovas Tipo Ia de Riess et al. À direita, o mesmo para as 42 supernovas de Perlmutter et al. As escalas verticais dos dois gráficos diferem de um valor constante devido a representações distintas, mas isto não altera a forma das curvas. Note que o eixo horizontal mostra z em escala logarítmica, ou seja, log z. O eixo vertical (m-M e effective mB) representa o logaritmo da distância (log d; eq. 3) e o eixo horizontal (log z) representa o logaritmo da velocidade (log v; eq. 2).


Wheeler utiliza uma reta de referência para analisar os gráficos. Esta reta corresponde à expressão dada pela eq. 4, que é equivalente a v ∝ d. Como vimos, esta expressão só vale para z<<1, e para estendê-la para z ≈ 1, como ocorre na figura 1, Wheeler supõe um universo sem massa (em termos práticos, com massa desprezível) cuja expansão não sofreria então desaceleração devido à atração de sua própria massa (veja a velocidade v real em um universo com desaceleração na figura 2 de O efeito Hubble). No caso deste universo hipotético a expansão obedece a lei de Hubble para todos os valores de z.

Vamos agora à argumentação de Wheeler para deduzir a expansão acelerada dos gráficos mostrados na figura 1 em suas próprias palavras.

“Se os pontos na figura estão ao longo de uma linha reta, então a velocidade de expansão é proporcional à distância, como alguém esperaria se nada desacelerasse a matéria ejetada do Estrondão. Mas os pontos na figura parecem estar ligeiramente acima da reta para as supernovas mais distantes (canto superior direito dos diagramas). Isto poderia significar que as supernovas mais distantes (mais deslocadas para o alto no eixo vertical) estão se afastando mais lentamente do que o esperado (mais deslocadas para a esquerda no eixo horizontal do que o esperado). Estamos vendo os movimentos destas supernovas mais distantes como eles eram há muito tempo, porque a luz leva muito tempo para chegar até nós. Poderia isto significar que a taxa de expansão tempos atrás era mais lenta do que é agora? E quão significativo é o aparente desvio da linha reta? Você decide.”
Como vemos, o próprio Wheeler não está muito seguro da evidência observacional apresentada pelos dois estudos. Hoje, quase vinte anos depois, a situação continua quase a mesma. Trata-se, ainda hoje, de uma aceitação pessoal da evidência (o “Você decide” de Wheeler).

3. A Falácia

A defesa da independência das pesquisas dos grupos de Riess e de Perlmutter resulta de pelo menos três fatores, não mutuamente excludentes, os quais podem acometer o defensor: (1) inexperiência, (2) irresponsabilidade e (3) má fé.

É óbvio à mente descompromissada de arranjos sócio-econômico-científicos que os dois grupos trocavam ideias e métodos, especialmente em se tratando de um tema de tamanha relevância na cosmologia moderna. O futuro do modelo do Estrondão Quente estava em jogo. A evidência da aceleração resolveria um dos maiores problemas deste modelo, qual seja, o dilema da idade.

E além de tudo isto há um detalhe adicional importantíssimo. Os dois grupos compartilham um coautor: o astrofísico norte-americano (apesar do nome) Alexei Vladimir Filippenko. Senão, vejamos as listas completas dos autores dos dois trabalhos:

E Filippenko não é apenas mais uma peça no esquema. Trata-se de importante pesquisador, altamente produtivo, e participante de vários grupos de pesquisa e acostumado aos trabalhos de grupo. Vejam os trabalhos de Filippenko entre 1997 e 1999: são 200 trabalhos em 3 anos, o que representa uma média anual extraordinariamente alta. Deve ser ressaltado também que Filippenko é um especialista em supernovas, ou seja, o especialista em supernovas dos dois grupos, um ponto crucial das pesquisas. É bastante razoável acreditar que Filippenko exercera uma forte conexão entre os grupos, normatizando as interpretações das observações das supernovas.

Demonstra-se inequivocamente, portanto, a falácia.

4. Considerações finais

Se o resultado observacional que leva à hipótese de uma expansão acelerada é obtido por dois grupos “independentes” de pesquisa, acredita-se ter em mãos um sólido resultado. Por este motivo, os partidários do Estrondão Quente enfatizam com tanta veemência que a “expansão acelerada foi descoberta por dois grupos independentes”. Como vimos não existe tal independência e, portanto, o resultado não é tão forte quanto se supõe.

A invenção da expansão acelerada ocorreu para se resolver o antigo problema da inconsistência entre a idade cosmológica e a idade astronômica do universo, esta última deduzida a partir das idades dos objetos mais velhos do universo. O modelo do Estrondão Quente só se adequa a esta invenção à custa de novas invenções, quais sejam, aquelas da matéria escura e da energia escura. Para o leitor interessado, estas questões estão discutidas em mais detalhes no artigo A idade do universo, a constante de Hubble e a expansão acelerada e também em O dilema da idade do universo.



Leia outros artigos em www.fisica.ufmg.br/~dsoares/notices.htm.