Uma revolta: o metrô de Belo Horizonte


Domingos Soares

Departamento de Física, ICEx, UFMG -- C.P. 702
30161-970, Belo Horizonte -- Brazil
E-mail: dsoares@fisica.ufmg.br

19 de dezembro de 2004



Despreocupado leitor --- permita-me a intimidade e, vamos assim dizer, a pedagógica insolência --- você conhece a situação do sistema de transporte coletivo em Belo Horizonte? Não, você não conhece. Não conhece porque ele não faz parte de seu cotidiano. É claro que voce utiliza, de vez em quando, esta modalidade de locomoção, mas ela não faz parte de sua vida. Ao menor sinal de possível desconforto há sempre uma alternativa: um táxi, o próprio carro, uma carona com um parente ou um amigo, enfim, nunca a realidade desta maravilha da natureza que é o sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte!


Vamos lá então: o sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte é uma vergonha! Convido o desocupado leitor a uma visita, em horário de pico de final de dia, à Rua Guarani, à baixa Olegário Maciel, à Santos Dumont, às imediações da ``maravilhosa'' Praça da Estação. O nosso povo trabalhador, em atitude desconsolada, continua a luta diária pela sobrevivência, agora lutando por um espaço --- mínimo que seja --- nos dinossáuricos coletivos para um retorno aos lares distantes.


"Metrô é a abreviatura de metropolitano e se caracteriza por um sistema de transporte das grandes cidades que utiliza trens muito velozes que andam através de túneis subterrâneos, mas também podem percorrer trechos no mesmo nível do solo ou em vias elevadas. O primeiro metrô foi inaugurado em 1863, em Londres. Em seguida surgiram os de Nova York, Paris, Berlim, Chicago, Budapeste e Viena. Em 1974 entrou em circulação o primeiro metrô brasileiro, em São Paulo. Em 1979 foi inaugurado o metrô do Rio de Janeiro."


Há um ano atrás, em uma rápida viagem de fim-de-ano, folheava o catálogo telefônico de progressista cidade do interior de Minas Gerais, onde me encontrava, e me deparei com este texto --- certamente preenchendo lacunas de anunciantes --- em meio aos anúncios das páginas amarelas... Como em meu íntimo eu carrego esta revolta com a situação do transporte coletivo na cidade em que moro há quase exatos 40 anos, peguei da caneta e transcrevi o texto para a minha nova agenda de 2004. Um dia farei uso dele! E ai está! O primeiro metrô do mundo foi inaugurado em 1863. É realmente insuportável este fato: o primeiro metrô foi inaugurado em 1863! O metrô de Belo Horizonte começou a ser construído em 1981, e em 23 anos temos nada mais nada menos do que 23 kilômetros em operação! A linha 1 --- a única de que dispomos até hoje ---, do Eldorado à estação do Vilarinho, ainda não está completada! Faltam cerca de 7 (sete) quilômetros para a finalização dos projetados 30 km.


Qual é a razão disto? Por que a cidade de Belo Horizonte possui até hoje um vergonhoso sistema de transporte coletivo, que massacra a população de baixa renda, esta que não possui alternativas para a sua locomoção?


Envergonhemo-nos um pouco mais. O metrô de Nova York começou a ser construído em 1900 (hum mil e novecentos!) e foi inaugurado em 1904. Possui hoje uma rede de 1300 (hum mil e trezentos) km! Somos tão pobres assim? 1300 dividido por 23 é igual a 56,5. Apenas um número, e mais uma vergonha!


O metrô de São Francisco --- vamos agora para a costa oeste dos Estados Unidos --- foi inaugurado após o de Nova York, mas já incorporou inúmeras novidades tecnológicas, especialmente no sistema de controle de tráfego. Possui, além do mais, 6 (seis) km de linhas submersas, que atravessam a baía de São Francisco por meio de enormes tubulões de aço (aço? Oh, Minas Gerais!). A mesma técnica foi utilizada posteriormente no metrô de Nova York, que possui atualmente cerca de 500 metros de linhas submersas.


Envergonhemo-nos mais. Veiculou-se pelos noticiários de rádio e pelo caderno GERAIS, do EM, nos dias 17 e 18 de dezembro passados, a notícia da futura expansão do trem metropolitano de Belo Horizonte. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) apresentou, através de seu presidente, Sr. João Luiz da Silva Dias, a proposta inicial para a construção das linhas 2 (Barreiro-Santa Tereza) e 3 (Pampulha-Sion) do metrô. Serão mais 27 km de trilhos. Vamos aos números então: suponhamos concluídos os 30 da linha 1, mais 27 das novas linhas, e teremos o total de 57 km de linhas de metrô em Belo Horizonte. 1300 dividido por 57, teremos o fator de vergonha reduzido para 22,8. Uma considerável melhora, sem dúvida. Mas, ao rítmo atual, atingiremos esta meta provavelmente no ano de 2030 (dois mil e trinta), quando certamente o metrô de Nova York terá muito mais do que os seus atuais 1300 quilômetros. A vergonha portanto será muito maior!


Mas um momento. Que comparação mais ridícula é esta! Tomar como base a maior e mais rica cidade do planeta! Realmente, arrazado leitor --- desculpe-me a franqueza ---, vamos nos colocar em nosso devido lugar. Então, vamos fazer a comparação com... onde mesmo? Não, eu definitivamente quero fazer a comparação com a maior e mais rica cidade do planeta!


Envergonhemo-nos um pouco mais. O Sr. João está falando de uma certa proposta inicial. Nós não queremos saber de propostas iniciais, Sr. João, nós queremos um projeto executivo, e pronto para ser viabilizado. É exatamente isto o que a população quer. Nós queremos mais metrô, já!


Claro, não depende do Sr. João. Pobre, Sr. João! Mas o transporte coletivo em Belo Horizonte, como é que vai ficar? Com a palavra as autoridades constituídas pela população para o governo desta municipalidade. A propósito --- ocorre-me agora ---, o que é mesmo ser uma autoridade constituída pelo voto popular? É uma pergunta interessante.


Vou agora abordar o tema final deste desabafo de revolta. As razões, ou A RAZÃO, para a situação vergonhosa do sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte. Entro não obstante numa área científica que não me é familiar; poderei cometer equívocos. Mas serei completa e absolutamente sincero: a elite governante é constituída por representantes da classe média belorizontina. A classe média não utiliza o sistema de transporte coletivo vigente. A classe média não se importa com as filas da Rua Guarani, da baixa Olegário Maciel, etc. A elite governante NUNCA esteve lá também. Ela é informada da situação através de relatórios em gabinetes climatizados. O que é mesmo uma fila de ônibus?


A classe média é tão importante assim? É ela que realiza as transformações na sociedade? Se, como e quando, não sei, mas que transforma, transforma. Vou dar um exemplo inequívoco: as relações de consumo. Por que os PROCONs? Por que as Delegacias Especiais de Relações de Consumo? Por que o respeito crescente ao Movimento das Donas de Casa? Por que o cuidado cada vez maior dos comerciantes em relação ao consumidor? Não foi tudo isto uma típica conquista da classe média, que, convenhamos, tem como uma de suas maiores atividades exatamente o consumo? Belo Horizonte é sem dúvida exemplo para outras cidades neste ponto.


É óbvio que é função primordial das autoridades eleitas pelo voto popular ter a sensibilidade para a detecção dos desvios elitistas nas metas de governo. Isto não ocorre definitivamente no Brasil, e não ocorre em Belo Horizonte, particularmente. Isto ocorre definitivamente em nações com um mínimo de dignidade social.


A propósito, alguém poderia me explicar por que os idealizadores de Brasília, inaugurada quase 1 século após a implantação do primeiro metrô no mundo, perderam a soberba, a extraordinária oportunidade de terem incluído no projeto original um sistema metroviário?



Leia também “Os marcos do metrô”.



Domingos Savio de Lima Soares
19Dez2004