Matéria escura não bariônica: o caso dos áxions

Domingos Sávio de Lima Soares

27 de outubro de 2008


1. As simetrias

As leis de conservação em física podem ser descritas em termos da preservação de "simetrias", sob determinadas transformações. Assim temos as simetrias, ou operações, de translação no espaço, de translação no tempo e de rotação no espaço, as quais podem ser descritas pelas leis de conservação do momentum linear, da energia e do momentum angular, respectivamente.

Algumas novas simetrias foram descobertas com o desenvolvimento da mecânica quântica, e levaram a outras leis de conservação, especialmente importantes no mundo microscópico, ou melhor, no domínio da física das partículas elementares. A operação da "paridade" (P) corresponde à troca de sinal das coordenadas espaciais. A função de onda f(x) pode ter paridade par, Pf(x)=f(-x), ou paridade ímpar, Pf(x)=-f(-x). A operação de "inversão de carga" (C) corresponde à troca da função de onda de uma partícula pela função de onda de sua anti-partícula, Cf(x)=f(x) ou -f(x), correspondendo a simetrias par e ímpar. Finalmente, a reversibilidade no tempo, Tf(x)=f(-x), corresponde a executar uma reversão no movimento das partículas envolvidas no processo físico.

Alguns sistemas obedecem a algumas destas simetrias, mas a expectativa dos físicos de partículas, teóricos e experimentais, é a de que a simetria CPT seja sempre obedecida em todas as situações.

2. O áxion

A existência do áxion -- um bóson não bariônico -- foi postulada em 1977 para explicar porque as interações fortes conservam a paridade e a inversão de carga, ou seja, a simetria CP. A massa do áxion é matéria de discussão teórica. Ele ainda não foi observado experimentalmente.

3. Cosmologia padrão: matéria escura não bariônica

No final da década de 1970 e início dós anos 1980, tornava-se claro que os sistemas astronômicos -- as galáxias individuais, os pares de galáxias, os grupos de galáxias, os aglomerados de galáxias -- deveriam possuir quantidades substanciais de matéria não luminosa. A razão matéria não luminosa sobre matéria luminosa, para cada sistema, curiosamente, era tanto maior quanto maior o sistema sob consideração, indo de uma razão 10 para as galáxias a até 1000 para os grandes aglomerados de galáxias. O cálculo da matéria luminosa e da matéria não luminosa era -- e é -- feito com os pressupostos clássicos da astronomia e das mecânica e gravitação newtonianas. A matéria luminosa (ou "radiante", isto é, que emite radiação) é calculada medindo-se a luz emitida em todos os comprimentos de onda possíveis e convertendo-se a "luz" em massa, usando os processos astronômicos apropriados em cada caso. A matéria total, que inclui a luminosa mais a não luminosa, é calculada dinamicamente utilizando-se as leis da dinâmica e da gravitação newtonianas.

Ora, esta matéria adicional não podia ser toda bariônica, mas apenas uma pequena parte dela. A razão disto é que a quantidade de bárions no universo atual é conseqüência da quantidade de bárions no universo primordial, quando foram sintetizados os elementos leves (essencialmente, hidrogênio, deutério, hélio e traços de lítio). A nucleossíntese primordial fixa o número de bárions primordiais, que por sua vez fixa o número de bárions hoje. A propósito, o modelo atual da cosmologia prediz mais bárions do que de fato são observados. Quer dizer, existe também um problema -- menos grave, mas existe -- de matéria escura bariônica.

Em vista da quantidade de matéria escura exigida pelos cálculos dinâmicos e pelas observações, ela deve ser em sua maioria não bariônica.

Os físicos de partículas precisam de matéria não bariônica, como visto na seção 2. Os cosmólogos e astrônomos também precisam, como visto acima.

Eles se uniram e, em 1984, os astrônomos e cosmólogos George Blumenthal, Sandra Faber e Martin Rees juntaram-se ao físico de partículas Joel Primack, e publicaram, na revista Nature, um artigo, que se tornaria muito influente, com o título "Formation of galaxies and large scale structure with cold dark matter". Lançaram a ideia da matéria escura não bariônica "fria", isto é, criada em repouso, ou com dispersão de velocidades muito baixa. O principal candidato tornou-se o áxion mencionado acima. A restrição cosmológica de que a densidade de áxions seja menor que a densidade crítica do modelo padrão impôs um limite inferior para a sua massa. Ela deve ser maior do que 10 µeV/c2. Para se ter uma ideia deste número, estimativas recentes para a massa de repouso das três espécies de neutrinos existentes resultam em cerca de 1 eV/c2.

4. Neutrinos: por que não eles?

Mas afinal de contas, por que não seriam os neutrinos a matéria não bariônica tão desejada? Afinal de contas o neutrino é não bariônico, e existe -- portanto não é "escuro" --, o que certamente é uma grande vantagem.

Há algumas razões para o neutrino ser descartado. Apresento aqui a justificativa dada por Blumenthal, Faber, Rees e Primack, que se tornou clássica. Os neutrinos constituem matéria não bariônica "quente", pois quando sâo criados, no universo primitivo, eles são relativísticos. A diferença básica da opção por matéria "fria" ou "quente" está nas conseqüências sobre a formação das estruturas gravitacionais ligadas, a saber, as galáxias e estruturas hierárquicas, superiores ou inferiores. Aglomerados de galáxias exemplificam as primeiras e aglomerados estelares, as segundas.

Num universo dominado por neutrinos, eles só se tornam "frios" o suficiente, para não "alisar" o espectro de flutuações de densidades, quando as flutuações possuem a massa de super-aglomerados de galáxias -- aglomerados de aglomerados --, ou seja, 1015 massas solares. Assim, estas serão as primeiras estruturas a se formar; as galáxias aparecerão depois, num processo de fragmentação hierárquica. As flutuações menores não colapsam por causa da dominação pelos neutrinos, os quais, na época da existência destas flutuações, possuem velocidades relativísticas.

Já com a matéria "fria", as primeiras flutuações a colapsarem possuem massas menores do que as das galáxias. Este cenário é o preferido pelos astrônomos. Esta preferência iniciou-se com a argumentação, coerente em muitos aspectos, apresentada por Blumenthal, Faber, Rees e Primack, em seu artigo de 1984.

Uma observação final: a matéria escura "quente" forma as estruturas gravitacionais de cima para baixo. A "fria", de baixo para cima.

5. Balanço de matéria-energia do universo segundo o modelo padrão

O modelo atual do universo é espacialmente plano. O espaço-tempo é curvo, já que o modelo atual possui expansão acelerada, neste instante cósmico. A propósito, e como comparação, é bom lembrar que o espaço-tempo da Teoria da Relatividade Especial, o espaço-tempo de Minkowski, é plano, também chamado de euclidiano.



Atualização: 24jul21


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