Galáxias espirais vistas de perfil: agulhas no céu

Domingos Sávio de Lima Soares

19 de dezembro de 2008

As galáxias são grupos de estrelas, as quais se contam das centenas de milhões às centenas de bilhões. São muitas estrelas, de fato. E cada um destes grupos -- destas galáxias -- é um sistema independente, pois as suas estrelas estão ligadas pela atração gravitacional entre elas. Podemos dizer que cada estrela se movimenta ao redor de todas as outras! Um exemplo muito mais simples, mas semelhante, é o da nossa Lua, a qual está ligada pela gravitação à Terra, e se movimenta em torno dela. A força gravitacional é a força que dá o peso das coisas. O peso que temos origina-se da atração gravitacional da Terra sobre nós.

As galáxias possuem formas variadas dependendo de como as estrelas, a poeira e o gás interestelares se distribuem para formá-las. Uma das formas mais espetaculares é apresentada pelas galáxias espirais. As estrelas se distribuem num bojo central, num disco, onde se desenvolve uma estrutura espiral, os chamados "braços espirais", e num halo exterior que envolve as duas componentes anteriores. Dependendo do ângulo sob o qual as avistamos, a partir da Terra, podemos ver as galáxias espirais "de frente", "de perfil", e de todas as orientações intermediárias possíveis. Quando as vemos de frente, podemos descortinar toda a beleza dos braços espirais, que aparecem tais como redemoinhos e cata-ventos no céu. Mas quando as vemos de perfil, evidencia-se uma de suas características mais marcantes, qual seja, a presença de um disco. Neste disco estão distribuídos as estrelas e todo o material galáctico restante, que se constitui de gás e poeira localizados entre as estrelas. A espessura do disco é muito pequena quando comparada com o seu raio. Nos casos extremos de visão de perfil aparentam a forma de uma "agulha" projetada no plano do céu. Veremos, então, alguns exemplos de galáxias vistas de perfil, e, especialmente, de algumas "agulhas no céu".

Começaremos pela galáxia espiral M104, ou NGC 4594, também conhecida pelo nome de "galáxia do Sombreiro", devido à sua aparência, que lembra um chapéu mexicano. Ela está a 50 milhões de anos luz de nós, localizada na região da constelação de Virgem. Ela é a galáxia mais brilhante de um pequeno grupo de galáxias. Na imagem, vemos uma faixa escura que corta o bojo central. Esta faixa escura é constituída de poeira interestelar e delineia o disco galáctico. Para uma comparação, vemos também a imagem da região central da Via Láctea. Esta região está localizada a apenas 30 mil anos luz -- compare com a distância do Sombreiro --, e é por este motivo que vemos uma faixa escura de poeira bastante irregular, formada por nuvens de poeira. A propósito, esta imagem foi obtida no Observatório do Pico dos Dias (OPD), do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), localizado no Sul de Minas, no município de Brazópolis. O campo do céu mostrado na imagem é enorme, de 90 por 40 graus, e a câmera utilizada localiza-se na parte externa aos prédios que abrigam os telescópios de pesquisa. Pode-se ver, no canto inferior esquerdo da imagem, uma parte do prédio que abriga a cúpula do telescópio de 1,60 m de abertura do OPD, iluminado pela luz da Via Láctea! O tempo de exposição para a obtenção desta imagem foi de 60 segundos. O céu é monitorado continuamente, durante a noite, para que os astrônomos possam avaliar a qualidade do céu no sítio do observatório. Qualquer pessoa pode ter acesso a estas imagens através da página eletrônica do LNA, em www.lna.br.

A semelhança entre M104 e a Via Láctea é enganadora pois, na verdade, elas são bastante diferentes. Devemos lembrar que estamos olhando para dois objetos astronômicos localizados a distâncias muito diferentes. A seguir, veremos uma galáxia que, esta sim, é bastante semelhante à nossa Via Láctea. Após a apresentação desta outra galáxia, a discussão desta questão será retomada.

A galáxia M104 exibe um bojo estelar central e um disco estelar e de poeira. A nossa Via Láctea apresenta uma estrutura semelhante. Vemos mais detalhes na imagem da Via Láctea porque estamos situados nela, e, portanto o seu bojo está muito mais próximo de nós.
(Crédito: M104, Domínio Público; Via Láctea: Laboratório Nacional de Astrofísica, Observatório do Pico dos Dias, Brazópolis, MG)

Veremos agora duas galáxias vistas de perfil, ao extremo! A primeira é chamada "galáxia da Agulha", ou NGC 4565. Trata-se de uma galáxia isolada, isto é, não faz parte de um grupo ou de um par de galáxias. Ela está a 30 milhões de anos luz.

A outra está catalogada no "Uppsala General Catalogue of Galaxies" (UGC) com o número 7321. O catálogo UGC foi determinado pelo astrônomo sueco Peter Nilson, publicado em 1973, e contém quase 13.000 galáxias. A maioria delas é visível apenas de sítios localizados no hemisfério Norte.

A nossa segunda galáxia, UGC 7321, é tão fina no céu que é conhecida como a "galáxia Superfina". A sua distância é também de aproximadamente 30 milhões de anos luz, e portanto, como NGC4565, é próxima de nós. Ambas estão localizadas na região da constelação da Cabeleira de Berenice, ou de Coma Berenices, o seu nome em latim.

NGC 4565, a "galáxia da Agulha", apresenta um pequeno bojo central. Já UGC 7321, a "galáxia Superfina", só nos mostra o perfil de seu disco. O seu bojo é inexistente. A região central pode ser identificada por um pequeno aumento de brilho do seu disco.
(Crédito: Observatório Palomar)

Note, na imagem de NGC 4565, uma pequena nebulosidade azulada localizada bem acima do bojo da galáxia. Trata-se uma galáxia anã, satélite da galáxia maior.

Ela está catalogada no "Index Catalogue" (IC) com o número 3571. Este catálogo complementa o catálogo NGC ("New General Catalog"), de John L.E. Dreyer (1852-1926). O próprio Dreyer foi o responsável pela sua compilação. O catálogo IC foi publicado, pela primeira vez, em 1895, e hoje conta com quase 6.000 objetos, dos quais 2.400 são galáxias.

Apesar de ser uma galáxia anã, IC 3571 influencia, de maneira perceptível, NGC 4565, através de sua força gravitacional. Isto foi verificado em observações de ondas de rádio. O hidrogênio atômico, em forma gasosa, é abundante nas galáxias espirais, e ele pode ser detectado pois emite ondas longas -- de rádio, portanto -- de comprimento de onda de 21 cm. As observações de rádio de NGC 4565 mostram que existe um disco de hidrogênio gasoso muito mais extenso do que o disco estelar. Na extremidade mais próxima da galáxia anã, o disco de hidrogênio dobra-se na direção de IC 3571, evidenciando a sua influência gravitacional. Trata-se de um efeito conhecido, denominado "interação de maré", nome originário de efeito semelhante observado nos oceanos terrestres devido à força gravitacional da Lua. Este efeito causa as marés oceânicas, de onde vem o nome deste tipo de interação. A propósito, IC 3571 também possui bastante hidrogênio atômico. Nada disso é de se espantar, pois o elemento químico hidrogênio é o mais abundante do universo, seguido do elemento químico hélio. O hidrogênio constitui cerca de 75% de toda a matéria detectável existente no universo, e o hélio representa cerca de 24%. Os restantes 1%, ou mesmo menos, são responsáveis por tudo o mais que existe, incluindo aí os seres humanos, todos os seres vivos do planeta Terra, outros planetas não gasosos e todos os outros objetos astronômicos não gasosos do universo. É bom lembrar que as estrelas e outros objetos gasosos são todos constituídos principalmente de hidrogênio e hélio.

IC 3571 está localizada a uma distância de 4 minutos de arco, no plano do céu, do centro de NGC 4565. Esta distância aparente corresponde a 35.000 anos luz, à distância em que estas galáxias se encontram (30 milhões de anos luz). Existe uma outra galáxia satélite, maior do que IC 3571, e localizada a pouco mais de duas vezes a sua distância ao centro de NGC 4565, e na direção oposta. Ela é a galáxia NGC 4562, e não aparece no campo do céu mostrado aqui. Ela é maior que IC 3571, mas bem menor que NGC 4565. Tanto NGC 4565 quanto NGC 4562 apresentam um disco em rotação. IC 3571, uma galáxia anã irregular, não possui rotação.

NGC 4565 é uma típica galáxia espiral gigante, ao contrário de UGC 7321, que é uma galáxia anã, não possui um bojo central, e possui pouca poeira interestelar. UGC 7321, a galáxia Superfina, faz parte de uma categoria de galáxias, denominadas "galáxias superfinas", todas compartilhando as mesmas características mencionadas acima. Para ilustrar esta família, veremos mais três membros. Elas estão juntas a UGC 7321 na imagem que mostramos aqui.

Nesta montagem, vemos quatro membros da família das galáxias superfinas. Da esquerda para a direita temos IC 2233, na constelação do Lince, UGC 7170 em Coma, a nossa UGC 7321, também em Coma, e UGC 9242 na cosntelação do Pastor.
(Crédito: J.W. Goad e M.S. Roberts)

As galáxias superfinas são galáxias espirais, de certa forma "subdesenvolvidas". Elas são galáxias anãs, onde não há presentemente a formação de estrelas, devido à escassez de material interestelar. Estas galáxias, como todas as espirais, apresentam um disco em rotação, e provavelmente são bastante comuns no universo. Como possuem um brilho muito pequeno, não foram tão notadas no passado, como bem mereceriam. Por exemplo, existem poucas galáxias superfinas nos catálogos NGC e IC, os quais foram determinados, no século XIX, a partir de observações diretas com telescópios, e não a partir de fotografias do céu. A astrofotografia só se iniciaria já bem no final do século XIX. Já o catálogo UGC, mais recente, como vimos, lista muitas galáxias superfinas, pois ele foi criado a partir de fotografias do céu obtidas no Observatório do Monte Palomar, nos Estados Unidos. De qualquer forma, aqui chamamos a atenção para elas: vejam, como são interessantes e belas as galáxias superfinas!

Voltemos agora à questão das semelhanças que a Via Láctea tem com duas das galáxias apresentadas anteriormente. A galáxia da Via Láctea, se pudesse ser vista de perfil, deveria se parecer muito mais com NGC 4565 do que com M104, ao contrário do que poderiam sugerir as imagens da Via Láctea e de M104 mostradas acima. É que M104 está quase 2.000 vezes mais distante do que o bojo da Via Láctea! A comparação importante de se fazer é a dos tamanhos relativos dos bojos e dos discos das galáxias. Na imagem anterior, vemos quase todo o disco de M104, mas apenas uma pequena porção do disco da Via Láctea. A imagem da Via Láctea, em luz infravermelha, mostra que NGC 4565 e a Via Láctea são muito mais parecidas neste aspecto.

A Via Láctea vista, na luz infravermelha, por um dos instrumentos a bordo do satélite norte-americano COBE, sigla em inglês para "Cosmic Background Explorer". Observe a semelhança extraordinária com a imagem de NGC 4565, especialmente quanto aos tamanhos dos bojos -- as regiões centrais das galáxias -- em comparação com os tamanhos dos discos vistos de perfil.
(Crédito: NASA)

Vimos mais uma vez que as galáxias, dependendo do ângulo sob o qual nós as avistamos, nos apresentam formas bastante interessantes e belas. E úteis também. As galáxias espirais vistas de perfil são extremamente convenientes para fazermos medidas de suas velocidades internas, isto é, das velocidades das estrelas e das nuvens de gás e poeira que as constituem. A razão disto é que o material do disco galáctico se movimenta no plano do disco de maneira ordenada, pois o disco está em rotação. E quando elas são vistas de perfil o material, ao longo do disco, estará se afastando ou se aproximando do observador, dependendo do sentido da rotação galáctica. Nada disso é possível de ser observado quando as galáxias espirais são vistas de frente. Mas aí podemos medir outras propriedades importantes, como por exemplo, a densidade de estrelas no plano da galáxia. Esta é riqueza da astronomia. Apesar de não termos acesso direto aos objetos astronômicos, nós podemos vê-los de tantas maneiras diferentes que podemos ambicionar conhecê-los de forma cada vez mais completa!

O autor agradece o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).