Galáxia lenticular: nem espiral, nem elíptica, mas com um pouco de cada uma

Domingos Sávio de Lima Soares

31 de agosto de 2009

As galáxias lenticulares foram as últimas a entrarem na classificação morfológica das galáxias, determinada pelo astrônomo norte-americano Edwin Hubble (1889-1953). A morfologia refere-se às formas das galáxias. As lenticulares são galáxias cujas estrelas se distribuem formando um disco e um esferóide central, como as galáxias espirais, mas não possuem braços espirais. Elas são, além disso, "limpinhas", como as galáxias elípticas, quer dizer, possuem muito pouco gás e poeira interestelares, mas, diferentemente destas, não possuem uma forma global esferoidal. Em suma, as galáxias lenticulares têm um pouco de cada uma das duas classes de galáxias.

Quando Hubble propôs a sua classificação das galáxias, pela primeira vez, em 1926, a classe de lenticulares não foi reconhecida. Mas ao longo dos anos, Hubble começou a acreditar que deveria haver uma classe de galáxias que fizesse um ponte entre as elípticas, que possuem uma forma geral de um esferóide, e as galáxias espirais, que são galáxias predominantemente de disco, com braços brilhantes e majestosos. Em seu livro de 1936, "The Realm of the Nebulae" (ou, "O Reino das Nebulosas"), ele incluiu esta classe na sua forquilha de galáxias. No cabo da forquilha estavam as galáxias elípticas, e nos dois ramos da forquilha estavam as galáxias espirais, com e sem barra. No vértice da forquilha, representando uma transição morfológica entre elípticas e espirais, ele postulou a existência de uma nova classe, a das galáxias lenticulares. Elas foram designadas pela letra "S" seguida de "0", ou seja, S0. Nunca é demais rever a forquilha de Hubble, o diagrama criado por Hubble para a representação esquemática de sua classificação morfológica. Vejam a figura, e reparem nela a posição das galáxias S0.

A classificação morfológica das galáxias: a forquilha de Hubble. As galáxias lenticulares, designadas por "S0", estão posicionadas no vértice da forquilha.
(Crédito: Domínio Público)

Não haviam ainda evidências observacionais concretas de sua existência. Entre os anos de 1936 e 1950, especialmente a partir da entrada em operação do telescópio de 5 metros de abertura, do Monte Palomar, é que as evidências empíricas mostraram que, de fato, a classe das S0s era uma realidade. Testemunhamos aí, mais um "golpe de mestre" do extraordinário astrônomo, sem dúvida nenhuma, o maior expoente da astronomia, na era dos grandes telescópios.

A propósito, podemos destacar três grandes nomes, entre os astrônomos, cujas contribuições para o desenvolvimento da ciência moderna foram fundamentais: o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), o italiano Galileu Galilei (1569-1642) e Edwin Hubble. Tycho, o maior gênio da astronomia observacional antes da era dos telescópios -- as suas observações eram visuais --, introduziu o rigor científico no registro das observações astronômicas. Para ele, uma observação devia vir sempre acompanhada do erro presumido em sua obtenção. Galileu foi o primeiro a utilizar o telescópio, uma simples luneta, na realização de observações astronômicas. E fez descobertas sensacionais. Hubble inaugurou uma nova era na astronomia: ampliou os nossos horizontes com a descoberta das galáxias e a investigação do universo extragaláctico.

O que exatamente são as galáxias lenticulares? Por que elas têm este nome? E, se elas são galáxias de disco, como as galáxias espirais, por que elas não possuem braços espirais? Vamos começar a responder estas questões com o nosso primeiro exemplar.

Veja na figura abaixo a galáxia lenticular NGC 2549. Note que as estrelas se distribuem na forma de uma lente biconvexa, aquela lente que encontramos em uma simples lupa. Esta é a razão do nome desta classe de galáxias. As estrelas das galáxias lenticulares se distribuem num disco, e quando vistas projetadas no plano do céu apresentam a sua forma peculiar. É que o disco muitas vezes é visto inclinado, relativamente à nossa linha de visada. Então, a aparência do disco, observado no céu, é a de uma lente biconvexa. Quando ela é vista de frente, ela apresentará uma forma aproximadamente circular e poderá muito facilmente ser confundida com uma galáxia elíptica.

NGC 2549 é uma galáxia lenticular vista de lado. Note a distribuição suave da luz estelar, como ocorre nas galáxias elípticas. As galáxias lenticulares são encontradas em regiões densamente povoadas de aglomerados de galáxias. A maioria das pequenas galáxias vistas em torno de NGC 2549 são galáxias distantes vistas em projeção no plano do céu. Estas são galáxias que habitam a periferia do aglomerado.
(Crédito: Sloan Digital Sky Survey)

Uma das teorias aceita entre os astrônomos, sobre a forma particular das galáxias lenticulares, está baseada no fato de que estas galáxias são sempre encontradas nas regiões mais densamente povoadas dos aglomerados de galáxias. Nestas regiões, além de existirem muitas galáxias, existe também muito gás intergaláctico. Segundo a teoria, uma galáxia de disco, originalmente com muito gás e poeira interestelares, perde este gás e poeira ao se movimentar através do meio intergaláctico. As estrelas da galáxia passam incólumes pelo meio gasoso intergaláctico, mas o gás e a poeira da galáxia interagem fortemente com o gás exterior, sendo arrancados da galáxia.

Uma outra possibilidade, semelhante à anterior, invoca uma colisão frontal entre duas galáxias espirais, que como sabemos, são galáxias de disco, cheias de gás e poeira interestelares. O gás e a poeira dão origem a novas estrelas, que brilham nos braços espirais. Pois bem, ao colidirem, as estrelas das duas galáxias não interagem, pois estão separadas por imensos espaços, mas o gás e a poeira estão distribuídos de forma uniforme nos discos das galáxias. As galáxias passam, então, uma pela outra, e perdem o seu gás e poeira, que interagem fortemente, gerando uma nuvem de gás e poeira em altas temperaturas, que, posteriormente, se espalham pelo meio intergaláctico. O resultado final será a formação de duas galáxias lenticulares.

A conclusão que tiramos destes dois cenários é que as galáxias lenticulares foram no passado galáxias espirais, as quais perderam os constituintes de seus meios interestelares, que são a matéria prima para a formação de novas estrelas. Uma consequência disto é que não há formação de novas estrelas nas galáxias lenticulares, ao contrário do que ocorre copiosamente nas galáxias espirais.

As galáxias lenticulares são, portanto, constituídas de estrelas velhas. Elas possuem, muitas vezes, além de um disco estelar, um bojo esferoidal na região nuclear, como mencionamos acima. Este bojo é formado por estrelas que se movimentam com órbitas radiais, isto é, trajetórias que passam próximas do centro galáctico. A galáxia mostrada a seguir mostra estas duas características: um disco e um grande bojo estelares. trata-se de NGC 3115, localizada a 32 milhões de anos-luz.

NGC 3115, uma galáxia lenticular onde se pode ver o disco estelar e um grande bojo estelar na região central. Note a ausência de poeira interestelar, que apareceria como trilhas escuras por toda a galáxia, obstruindo a luz das estrelas. Isto é comum nas galáxias espirais.
(Crédito: John Kormendy)

Quando uma galáxia S0 é vista de perfil, como no caso de NGC 3115, ela pode ser confundida com uma galáxia espiral vista também de perfil. Observações de alta qualidade são necessárias para se descartar a presença dos braços espirais. Dinamicamente, as galáxias lenticulares são indistinguíveis das espirais, pois ambas apresentam um disco em rotação. Para se distinguir entre elas é necessária uma análise cuidadosa da distribuição da luz emitida pelas estrelas, buscando-se detectar a presença de braços espirais ou de poeira interestelar em quantidades apreciáveis, que são características das galáxias espirais. Por outro lado, quando uma galáxia lenticular é vista de frente aparece outra dificuldade. Elas tornam-se, visualmente, indistinguíveis de uma galáxia elíptica! Novamente a distinção deve ser feita a partir da distribuição da luz galáctica. A intensidade da luz das galáxias lenticulares diminui progressivamente, a partir do centro galáctico, de maneira mais suave do que nas galáxias elípticas. Não é possível se recorrer a métodos cinemáticos ou dinâmicos, como, por exemplo, um estudo da rotação galáctica, pois é impossível de se medir a rotação em galáxias vistas de frente. É bom lembrar que as galáxias elípticas apresentam muito pouca rotação. Infelizmente, este fato não auxilia na distinção entre elas, como mencionado, devido à dificuldade observacional das velocidades de rotação.

O nosso próximo exemplar, NGC 4612, é uma galáxia lenticular vista com pouca inclinação relativamente à linha de visada. Ela pode ser confundida com uma galáxia elíptica. Mas a análise de sua luz mostra que trata-se de legítima lenticular. E com uma característica interessante: ela possui uma barra! As lenticulares, como as galáxias espirais, também podem ter barras estelares. Nestes casos, elas são chamadas de galáxias "SB0", onde a letra "B" anuncia a apresença de uma barra estelar.

A galáxia lenticular NGC 4612 pode ser confundida com uma galáxia elíptica. Mas não é, como evidencia a análise de sua luz. Esta galáxia possui uma barra estelar, que é a estrutura, fracamente visível aqui, atravessando horizontalmente o centro da galáxia.
(Crédito: Space Telescope Science Institute)

Como vimos, as galáxias lenticulares apresentam um mundo inteiro de particularidades. Isto mostra como é rica a forquilha de Hubble: cada classe de galáxias ali presente abre horizontes infindáveis de pesquisa astronômica.

O autor agradece o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).