Cosmologia moderna: tateando no escuro

Domingos Sávio de Lima Soares

16 de abril de 2008

O Desconhecido! O homem tem e sempre teve horror ao Desconhecido! E o que dizer do Grande Desconhecido, o universo em que vivemos? Desde tempos imemoriais o homem tentou se tranquilizar em relação ao Grande Desconhecido. Inicialmente, através de mitos e lendas, a humanidade elaborou idéias que a permitiram conviver de forma suportável com o universo. Estas visões do universo eram, no entanto, tão variadas e múltiplas quanto a variedade e a multiplicidade de seus criadores.

Até que surgiu uma nova maneira de encarar a natureza, e por extensão, o universo. Esta nova maneira recebe o nome de ciência, e, ao contrário da subjetividade inerente aos mitos e lendas primitivos, é caracterizada pela objetividade. Inicialmente são feitas suposições gerais sobre o objeto de seu estudo, e a partir destas suposições, ou postulados, é elaborada uma teoria científica. A teoria deve explicar os fenômenos aos quais ela pretende se aplicar, e deve fazer previsões de novos fenômenos. As previsões são então testadas através da experiência ou da observação da natureza. Desta forma, uma teoria será comprovada ou não, dependendo dos resultados dos testes.

O estabelecimento da ciência moderna resultou do trabalho de inúmeros pensadores. No caso das ciências exatas, e em particular da física, o primeiro cientista moderno foi sem sombra de dúvida, o grande sábio inglês Isaac Newton (1643-1727). A sua obra marca o início desta maneira rigorosa e objetiva de se estudar a natureza: o método científico.

O estudo científico do universo recebe o nome de "cosmologia". Trata-se de uma ramificação da física, ou, mais apropriadamente, da astrofísica. A cosmologia é, portanto, a ciência do universo. O seu fim é entender o universo, e isto inclui a sua formação, a sua evolução e o seu estado presente. Ou seja, responder as definitivas questões: de onde viemos, para onde vamos e onde estamos.

Pode-se afirmar que a cosmologia, como hoje é entendida, teve o seu início em 1917, quando o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) propôs o seu modelo do universo. Baseado na Teoria da Relatividade Geral (TRG), de sua autoria, que é uma teoria de gravitação, e na sua percepção do mundo físico, Einstein estabeleceu um modelo do universo que, em grande escala, era homogêneo, isotrópico -- em média, o mesmo em todas as direções -- e estático. A idéia de um universo em expansão, tão popular hoje em dia, e característica principal da cosmologia moderna, não era de forma alguma sequer imaginada.

Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade Geral que, entre outras aplicações, é a base para os modelos da cosmologia moderna.
(Crédito: Domínio Público)

As soluções das equações da TRG, que possuíam como característica a expansão do universo, foram obtidas pela primeira vez pelo russo Alexander Friedmann (1888-1925), tornadas públicas em artigos científicos datados de 1922 e 1924. Estes trabalhos foram seguidos, de forma independente, pelas pesquisas do cosmólogo belga -- e padre católico -- Georges Lemaître (1894-1966), publicadas em 1927 e 1931, que também resultaram em modelos de universo em expansão. Tais modelos alcançaram projeção no mundo científico a partir da descoberta da relação proporcional entre o chamado "desvio para o vermelho" e a distância -- ou mais precisamente o brilho aparente -- das galáxias. Esta relação, investigada por vários astrônomos, foi estabelecida de forma segura e definitiva em 1929 pelo astrônomo norte-americano Edwin Hubble (1889-1953). Verificara-se observacionalmente, que a luz emitida pelas galáxias possuía comprimentos de onda, cujos valores eram deslocados em direção ao vermelho, no espectro de luz visível -- o desvio para o vermelho --, e a relação, ou lei, de Hubble mostrava que este desvio era proporcional à distância das galáxias. Este tipo de relação entre comprimento de onda da radiação e distância era exatamente o que era predito pelas soluções de Friedmann e Lemaître.

A descoberta, ou mais apropriadamente, a invenção do conceito de um universo em expansão decorreu de dois aspectos, a saber, de resultados teóricos e de observações astronômicas. Isto significa, na verdade, que a expansão do universo não é um fato empírico, i.e., deduzido diretamente da observação da natureza, como o é, por exemplo -- e para mencionar um caso estreitamente relacionado à cosmologia --, a existência individualizada das galáxias. O grande astrônomo Edwin Hubble teve aqui também atuação decisiva. Foi ele quem mostrou, de forma brilhante e definitiva, que as chamadas "nebulosas espirais" eram objetos astronômicos independentes de nosso sistema estelar, a galáxia da Via Láctea. A sua descoberta foi baseada inteiramente em relações empíricas, obtidas a partir das observações astronômicas. Quer dizer, as galáxias não foram "inventadas", mas, de fato, descobertas.

Ao se aceitar a expansão do universo, as conseqüências são dramáticas. Uma simples extrapolação temporal da expansão do universo, para épocas passadas, leva a um estado de altas densidade e temperatura, que em princípio não tem limites. E acima de tudo estabelece um início para a história do universo.

Muitos cientistas, contemporâneos destes desenvolvimentos científicos, não aceitaram estas idéias, reputando-as como simplórias e até mesmo repugnantes. Entre eles está o astrofísico e cosmólogo inglês Fred Hoyle (1915-2001).

Fred Hoyle tentou inclusive ridicularizar o modelo de Friedmann-Lemaître apelidando-o de universo do "Big Bang". Que poderíamos traduzir, no mesmo espírito, como o universo do "Estrondão". Muitas vezes, Big Bang é traduzido por "Grande Explosão", o que não é apropriado, já que em inglês, o seu equivalente seria "Great Explosion", e não teria a conotoção jocosa pretendida por Fred Hoyle. Adotaremos, portanto, de agora em diante o termo "Estrondão", quando nos referirmos ao modelo do "Big Bang". Tal atitude pode ser considerada como uma homenagem ao grande teórico inglês, através da preservação de sua intenção ao cunhar o termo.

Pois bem, o nome no entanto passou a pertencer ao jargão científico, caindo quase no esquecimento as características de ridicularização que o motivaram.

Várias tentativas foram feitas no sentido de se evitar a desconfortável -- do ponto de vista científico -- singularidade, predita no universo do Estrondão. Mencionaremos aqui apenas duas delas. A primeira, o modelo de Eddington-Lemaître, foi proposto pelo astrofísico teórico inglês Arthur Eddington (1882-1944) e Georges Lemaître, com o fim específico de se evitar a singularidade -- eufemismo para "fase desconhecida" -- inicial. Neste modelo, a extrapolação temporal para o passado termina num estado inicial com características semelhantes ao universo estático de Einstein. Em todas as outras fases ele é indistinguível do modelo com singularidade.

A segunda tentativa, de caráter mais amplo e revolucionário, foi proposta por Fred Hoyle e colaboradores. Esta segunda tentativa se ramifica em duas, separadas por quase 50 anos. A primeira, denominada "Cosmologia do Estado Estacionário", foi proposta por Hoyle e pelos cientistas Hermann Bondi (1919-2005) e Thomas Gold (1920-2004), em 1948. A segunda surgiu am 1993, após o fracasso da primeira, e foi idealizada por Hoyle, por Geoffrey Burbidge (1925- ) e pelo físico teórico indiano Jayant Narlikar (1938- ), e denomina-se "Cosmologia do Estado Quase Estacionário". A semelhança dos nomes reflete alguns pontos que elas têm em comum.

Em 1948, como visto acima, Hoyle e, independentemente, Bondi e Gold, propõem o modelo do estado estacionário. O universo é homogêneo, isotrópico e infinito espacialmente, e além disso, ao contrário do universo do Estrondão, tem uma idade infinita. O modelo expande-se, como no Estrondão, mas matéria é contínua e uniformemente criada, de forma a garantir a homogeneidade e isotropia. A teoria não indica de que forma a matéria é criada. A violação da lei da conservação da matéria, lei esta implícita na TRG, foi contornada por Hoyle através de um artifício matemático.

A idéia de criação contínua de matéria foi fortemente questionada durante as décadas de 1950 e 1960, anos que se seguiram à sua proposição. Hoyle propôs uma pequena modificação na TRG para permitir a criação de matéria a partir de um "reservatório" de energia negativa. À medida que a matéria é criada, a conservação da energia resulta num reservatório de energia cada vez mais negativo. A expansão do universo, no entanto, mantém a densidade de energia do reservatório e a densidade média da matéria no universo constantes. Daí vem o termo "estacionário" no nome da teoria. Na época em que foi proposta era uma teoria bastante atrativa pois atribuía uma idade infinita ao universo. Isto era uma grande vantagem em relação à teoria do Estrondão, a qual implicava numa idade do universo cerca de dez vezes menor que a idade geológica da Terra!

Esta inconsistência básica foi o principal sustentáculo, durante muitos anos, do modelo do estado estacionário. A situação mudou entretanto na década de 1960. A descoberta da radiação de fundo de microondas, em 1965, pelos norte-americanos Arno Penzias (1933- ) e Robert Wilson (1936- ), a revisão da estimativa da idade do universo, à luz de novos dados observacionais, a descoberta dos quasares, que de certa forma, implicava num quadro consistente de evolução de galáxias, e outros desenvolvimentos teóricos, experimentais e observacionais, levaram paulatinamente a um descrédito na teoria do estado estacionário, e o modelo do Estrondão ocupou de vez o cenário cosmológico.

Albert Einstein, de bicicleta, na cidade de Santa Bárbara, Califórnia, Estados Unidos: "A vida é como andar de bicicleta. Para se manter em equilibrio é preciso estar sempre em movimento".
(Crédito: Domínio Público)

Os modelos do Estrondão, i.e., os modelos de Friedmann-Lemaître, tornaram-se definitivamente a base do chamado "modelo cosmológico padrão", que passou a ser conhecido popularmente pelo termo em inglês "Big Bang".

Mas o modelo padrão logo revelou-se um celeiro de problemas.

O primeiro deles é a discordância entre os valores predito e observado da densidade de matéria no universo. O valor predito para a matéria "ordinária", aquela que está em nossos corpos e em tudo que observamos na natureza, também denominada "matéria bariônica", decorre do ajuste da teoria, na fase inicial da expansão, e tem por objetivo o cálculo das abundâncias químicas dos elementos de massa pequena, a chamada "nucleossíntese primordial". Estes elementos atômicos, deutério, hélio e lítio, foram sintetizados, de acordo com o modelo, na fase quente e densa do Estrondão e serviram de matéria prima para a formação dos demais elementos, no interior das estrelas. Por outro lado, o valor observado da densidade de matéria é obtido a partir do censo, isto é, da contagem de objetos luminosos (estrelas, galáxias, etc) no universo. A discrepância entre os dois valores, o predito e o observado, é da ordem de um fator de 10! A explicação desta diferença é dada pelos defensores do modelo padrão como sendo devida à presença de "matéria ESCURA". Quer dizer, ela existe mas por ser "escura", não é detectada. A expectativa é a de que, com a melhoria dos métodos e técnicas observacionais, ela será eventualmente detectada.

O segundo problema é causado pela dinâmica das galáxias, ou seja, pelo movimento das galáxias no universo. A rapidez com que as galáxias se movimentam nos aglomerados de galáxias exige que haja matéria que, pelo seu efeito de atração gravitacional, mantenha as galáxias "presas" nos aglomerados, como é de fato observado. Mas esta matéria não pode ser "ordinária", ou bariônica, cujo conteúdo já foi determinado, como descrito acima. Então ela deve ser matéria exótica, não bariônica, e, além do mais, ESCURA! Pois não é observada diretamente, especialmente, porque ainda não se sabe sequer que matéria é esta! Existem muitos candidatos teóricos para ela. Mas por enquanto não há nada estabelecido nesta questão. O modelo padrão requer, então, mais uma componente de matéria ESCURA, e desta vez, nem se sabe o que ela é.

O terceiro problema reside na radiação de fundo de microondas. Esta radiação é, de acordo com a teoria, a manifestação atual da "bola de fogo" inicial do Estrondão. As observações mostram que ela é exageradamente uniforme em intensidade. As flutuações de densidades observadas hoje na distribuição de galáxias não se conciliam com a homogeneidade da radiação "cósmica" de fundo, a não ser que ajustes artificiais e hipóteses adicionais sejam introduzidos na teoria.

O quarto problema é a "singularidade" inicial. A expansão iniciou-se no desconhecido e no inexplicável ponto onde todas as leis da física, como a conhecemos, não se aplicam. As tentativas teóricas de abordagem desta singularidade são difíceis de serem testadas observacional e experimentalmente.

E aqui entra a Teoria do Estado Quase Estacionário.

Os problemas delineados acima levaram Fred Hoyle, Geoffrey Burbidge e Jayant Narlikar, em 1993, a propor um novo modelo cosmológico, semelhante à teoria do estado estacionário mas com correções de alguns de seus defeitos. Como na velha teoria, ela prevê a criação contínua de matéria no universo, ao invés da criação de toda a matéria do universo num único evento, como na teoria do Estrondão. Matematicamente, a influência dos inúmeros eventos de criação de matéria é o estabelecimento de uma oscilação cósmica em torno da solução estacionária das equações cosmológicas. Dai o nome "quase estacionária" para a teoria. O universo presentemente está numa época de expansão que será seguida de uma contração, e assim sucessivamente. O período de oscilação é da ordem de 20-30 bilhões de anos. A teoria matemática subjacente é uma pequena modificação da TRG.

Esta nova teoria oferece cenários alternativos aos do modelo padrão para a síntese primordial dos elementos leves -- todos os elementos são formados no interior das estrelas --, para a homogeneidade e isotropia da radiação cósmica de fundo -- resulta da termalização da energia liberada na criação dos elementos leves --, e para a formação da distribuição de galáxias no universo, i.e., da sua estrutura em grande escala -- galáxias são criadas a partir de galáxias pré-existentes.

Em suma, a cosmologia do estado quase estacionário mantém acesa a chama da busca científica por um modelo consistente do universo. O que, diga-se de passagem, ainda não foi atingido.

Resultados observacionais recentes têm levantado novos problemas para o modelo padrão, e, se mostrado consistentes com uma das previsões da teoria do estado quase estacionário.

Trata-se das observações de supernovas -- explosões de estrelas em sua fase terminal --, em galáxias distantes. A partir de observações, realizadas pelo Telescópio Espacial Hubble, de galáxias com supernovas, mostrou-se que este tipo particular de supernovas são excelentes indicadores de distâncias. O objetivo das observações de supernovas é o de estabelecer a natureza precisa da expansão do universo predita pelo modelo padrão.

Dois grupos de pesquisa americanos usaram amostras de supernovas diferentes e técnicas de análise também diferentes, e chegaram à mesma conclusão: o universo está atualmente em expansão acelerada! O resultado é surpreendente, do ponto de vista dos modelos derivados do paradigma de Friedmann-Lemaître, os quais prevêem universos desacelerados, ou seja, universos em expansão, mas com taxas de expansão progressivamente menores. O modelo padrão pode ser reconciliado com a expansão acelerada desde que haja uma componente energética no universo responsável pela aceleração. Com o fim de se preservar o modelo padrão, recorre-se, então, a esta alternativa energética que forneça a pressão "negativa" necessária à manutenção da expansão acelerada. Esta componente energética recebeu o nome de "energia ESCURA". O termo ``escura'' do nome é, mais uma vez, o eufemismo astronômico, já tradicional, para "desconhecida". Desconhecida mas não desqualificada. A energia escura tem as seguintes propriedades: sendo escura, não emite luz (i.e., radiação eletromagnética de modo geral), exerce uma grande pressão negativa, e é aproximadamente homogênea (quer dizer, desacoplada da matéria em escalas pelo menos tão grandes quanto de aglomerados de galáxias). Estas propriedades mostram que "energia" é o termo correto para qualificar esta nova componente escura. Ela é portanto qualitativamente bastante diferente da matéria escura.

Concluindo, de acordo com o modelo padrão, e a serem confirmados os resultados das supernovas, teríamos um universo constituído aproximadamente de 2/3 da suposta energia ESCURA, 1/3 (da suposta) matéria ESCURA (bariônica e não bariônica) e 1/200 de matéria -- bariônica -- luminosa!

O perfeito entendimento e a detecção destas componentes ESCURAS são vitais para a própria sobrevivência do modelo padrão.

Vale a pena ressaltar que, tanto a teoria do estado estacionário quanto a teoria do estado quase estacionário preconizam, desde o início, muito antes dos projetos de supernovas, nada mais, nada menos, que uma expansão acelerada! Ponto para Hoyle e colaboradores, pelo menos neste aspecto de seus modelos de universo.

E assim a cosmologia moderna tateia no ESCURO! O Grande Desconhecido permanece ainda por ser desvendado. Como vimos acima, aproximadamente 99,5% do conteúdo do universo é "escuro", ainda desconhecido. Tudo o que existe, tudo o que pode ser observado com nossos olhos e nossos telescópios constitue apenas 0,5% de todo o "universo" da cosmologia do Estrondão. Ainda resta muito a fazer, tanto no aspecto teórico -- uma nova teoria cosmológica? -- quanto no aspecto observacional.

O autor agradece o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).