O universo indomável: as galáxias estranhas de Halton Arp

Domingos Sávio de Lima Soares

01 de agosto de 2008

Estamos acostumados a ver belas imagens de galáxias, monumentais arranjos de estrelas, gas e poeira interestelar. Numa delas, a galáxia da Via Láctea, está situado o Sol e o seu sistema planetário. A Galáxia -- este é também o seu nome -- é uma galáxia espiral gigante, ocupando o Sol uma posição periférica em seu disco. A nossa vizinha de mesmo porte é a galáxia de Andrômeda, outra galáxia espiral gigante, situada a 2 milhões de anos-luz de nós, e que também nos apresenta um espetáculo formidável e harmonioso, especialmente quando contemplada em imagens obtidas com telescópios. A propósito, a galáxia de Andrômeda é o objeto mais distante de todo o universo que pode ser visto a olho nu!

Mas as galáxias, assim como as pessoas, também podem ser complicadas, estranhas, e interagir de forma bastante peculiar com as suas semelhantes. É deste universo complexo e, de certa forma, indomável, que trataremos aqui.

Um dos primeiros astrônomos a se dedicar às galáxias "diferentes" foi o norte-americano Halton Christian Arp (1927- ), nascido na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e que possui o apelido de "Chip", o nosso familiar "Chapa". Concluiu o seu doutoramento em astrofísica em 1953. Mas mesmo antes já havia realizado pesquisas sob a orientação do grande astrônomo Edwin Hubble (1889-1953). Em 1957 foi contratado para trabalhar no Observatório Palomar, localizado no estado norte-americano da Califórnia, e onde estava o maior telescópio do mundo, na época. Trata-se de um telescópio refletor, onde a luz é coletada por um espelho, neste caso um gigantesco bloco de vidro de 5 metros de diâmetro, coberto por uma finíssima película metálica refletora. Arp trabalhou durante 29 anos no Palomar, até se transferir em 1983 para o Instituto Max Planck para Astrofísica, na Alemanha, onde permanece, ativo, até os dias de hoje.

A nossa estória se inicia com o interesse de Arp pelas galáxias que se distinguiam por apresentarem formas diferentes, na maioria das vezes, causadas por interações gravitacionais com as suas vizinhas imediatas. Algumas apresentavam-se nitidamente em processo de fusão! Duas ou mais galáxias interagiam tão fortemente que as suas formas originais eram destruídas e o conjunto interagente caminhava para um objeto único, constituído pela agregação das estrelas e de todo material existente nas galáxias originais. Assim que começou os seus trabalhos no Palomar, começou a procurar por galáxias deste tipo. Após um longo trabalho, publicou em 1966 o resultado: um atlas de galáxias "estranhas". Este atlas denomina-se "Atlas de Galáxias Peculiares", sendo até hoje utilizado de forma produtiva na pesquisa astronômica, que objetiva entender a evolução das galáxias.

O Atlas é constituído por 338 campos do céu, apresentados em forma retangular, identificados por "Arp nnn", em que "nnn" é o número do campo, tendo os valores de 1 a 338. Cada campo mostra uma ou mais galáxias, as quais sempre apresentam formas peculiares, na maioria dos casos resultantes das interações gravitacionais entre as galáxias. Os tamanhos dos campos vão desde 1 grau de largura -- duas vezes o diâmetro da Lua cheia --, que é o caso de Arp 318, até o menor deles, que possui pouco mais de 2 minutos de arco de largura. Os campos foram observados com o telescópio de 5 metros e com o telescópio "Schmidt", de 1,20 m, este último, apropriado para grandes áreas do céu, ambos do Observatório Palomar. As imagens foram registradas em emulsões fotográficas especialmente produzidas para uso astronômico.

As características gerais do Atlas foram separadas, por Arp, em quatro grandes grupos.

Arp 1 a 101 - Galáxias espirais com as seguintes características: baixo brilho, braços espirais subdivididos, braços com segmentos destacados, três braços, um braço, companheiras fracas e galáxias elípticas como companheiras.

Arp 102 a 145 - Galáxias elípticas com as seguintes características: ligadas a espirais, próximas a espirais perturbadas, fragmentos de galáxias próximos e material aparentemente ejetado.

Arp 146 a 268 - Galáxias -- fora das categorias anteriores -- com as seguintes características: presença de anéis, jatos, filamentos, caudas, braços espirais amorfos e laços adjacentes ao corpo principal.

Arp 269 a 338 - Galáxias duplas ligadas por braços estelares (pontes) e com filamentos longos, grupos de galáxias e cadeias de galáxias.

O leitor interessado nas ilustrações fotográficas destes grupos, obtidas pelo próprio Arp para o seu Atlas, deve acessar a página eletrônica http://nedwww.ipac.caltech.edu/level5/Arp/frames.html.

O "Chapa": o astrônomo Halton Arp proferindo uma palestra em Londres, outubro de 2000. (Crédito: Domínio Público)

Arp 81, mostrado aqui, é um par de galáxias espirais que iniciaram a colisão, ou seja, a sua aproximação máxima, há 100 milhões de anos. Durante este tempo, a forma original das galáxias envolvidas na colisão foi bastante perturbada. Pode-se notar os núcleos originais das galáxias, e indícios do que foram os seus discos estelares. Na parte superior da imagem vê-se uma "cauda" produzida pelas forças gravitacionais de uma galáxia sobre o disco estelar da outra, neste caso a maior delas, NGC 6621, à esquerda. Esta estrutura é denominada "cauda de maré". A formação destas caudas é devida ao mesmo tipo de fenômeno que produz as marés oceânicas na Terra, daí o seu nome. As marés oceânicas são causadas pelas forças gravitacionais combinadas da Lua -- principalmente desta -- e do Sol, sobre os oceanos terrestres.

Arp 81, um par de galáxias em forte interação gravitacional. A galáxia da esquerda é NGC 6621 e a da direita é NGC 6622. Arp 81 está a 300 milhões de anos-luz da Terra. Uma das principais conseqüências de interações deste tipo é a intensificação da formação de estrelas nas galáxias envolvidas. (Crédito: Telescópio Espacial Hubble/NASA)

Arp 244 é outro exemplo onde aparecem claramente as caudas de marés. Este sistema é conhecido como as "Galáxias das Antenas", por causa de seu aspecto peculiar. A origem das caudas é definitivamente devido às interações gravitacionais entre as estrelas dos dois discos originais das galáxias espirais que resultaram neste sistema.

Arp 244, outro par de galáxias em forte interação (NGC 4038 e NGC 4039). As caudas de marés, que emergem de ambas as galáxias do par, dão a impressão de serem antenas de um inseto, daí o nome popular deste sistema, "Galáxias das Antenas". (Crédito: Brad Whitmore/STScI)

Isto foi demonstrado pelos irmãos Alar Toomre, astrônomo e matemático, e Juri Toomre, astrônomo, através de simulações numéricas feitas com o auxílio de um computador, no final da década de 1960. Alar e Juri Toomre são naturais da Estônia. Em 1949 imigraram para os Estados Unidos onde realizaram os seus estudos, e onde desenvolvem pesquisas astronômicas até os dias de hoje.

As galáxias de Arp 244, NGC 4038 e NGC 4039, foram representadas por discos estelares, cada um deles com 120 partículas. Estas partículas, que representam as estrelas das galáxias, sofrem a ação da força da gravidade exercida por ambas as galáxias. Inicialmente as galáxias são discos de partículas perfeitos, e então são "jogados" em uma órbita elíptica, um ao redor do outro. Durante o movimento orbital, as "estrelas" vão, aos poucos, abandonando a distribuição original de disco, em virtude da ação das forças gravitacionais a que estão submetidas. Como está ilustrado na figura, parte das estrelas afastam-se bastante da maioria das estrelas que formavam os discos. Para obter uma imagem semelhante ao sistema real, os irmãos Toomre escolheram o melhor ângulo de visada do sistema simulado.

As simulações, deste sistema e de outros, feitas pelos Toomre mostrou, pela primeira vez na história da astronomia -- aqui, astrofísica genuína -- que as formas das galáxias interagentes eram resultados das interações gravitacionais entre os constituintes das galáxias em interação. A astronomia, o estudo das posições dos astros no espaço e no tempo, é aqui suplementada por uma lei física -- a lei da gravitação universal --, e torna-se autêntica astrofísica!

Após a pesquisa de Alar e Juri Toomre, que foi publicada em 1972, numa revista científica especializada, nos Estados Unidos, o estudo de galáxias interagentes, através de simulações numérico-computacionais, tornou-se tópico de grande atenção nos meios astronômicos. Este tipo de simulação é denominado "simulação de N corpos", em que os sistemas envolvidos nas interações são representados por sistemas contendo N partículas. Nas simulações de Arp 244, temos N=240. Atualmente, com o desenvolvimento dos supercomputadores, o número N pode chegar a 100 mil! Além disto, as galáxias são representadas por modelos mas realistas com a inclusão de gás e poeira, os quais são componentes importantes em algumas galáxias. Outros processos físicos são também considerados, tais como, a evolução química das galáxias e a conseqüente mudança em sua população estelar, e as interações hidrodinâmicas, típicas do componente gasoso.

Resultado da simulação numérica das Galáxias das Antenas. Os pequenos círculos preenchidos representam as estrelas de uma galáxia e os círculos vazios as estrelas da outra galáxia. O plano da órbita das galáxias originais, inicialmente constituídas por discos de estrelas, está indicado, em inglês, por "Orbit Plane". As forças gravitacionais mútuas agem de forma a arrancar as estrelas dos discos e formarem as caudas de maré. Compare com a figura anterior, que é uma imagem astronômica do sistema real. (Crédito: Alar Toomre e Juri Toomre)

Arp também é conhecido por sua forte oposição ao modelo padrão da cosmologia, a ciência da evolução e da estrutura do universo. O modelo padrão, conhecido como modelo do "Big Bang", ou, em bom português, modelo do "Estrondão", é aclamado nos meios científicos ortodoxos, mas possui críticos incisivos, que apontam as suas muitas inconsistências, especialmente quando as previsões da teoria são confrontadas com as observações astronômicas. As principais idéias de Arp, neste e em outros temas científicos, estão expostas em seu último livro, o qual foi traduzido para o português pelo físico André K.T. Assis, da Universidade Estadual de Campinas, e por mim. Trata-se de "O Universo Vermelho", publicado, no Brasil, em 2001, pela Editora Perspectiva. O livro é recomendado para todos aqueles que se interessem pela discussão dos aspectos controversos da ciência moderna, particularmente, da cosmologia.

O autor agradece o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).