Espectro de potência da Radiação de Fundo de Micro-ondas


Domingos Soares

01 de abril 2013



Resumo

Discuto alguns aspectos dos espectros de potência da Radiação de Fundo de Micro-ondas obtidos pelos observatórios espaciais WMAP e Planck. A queda anômala de potência verificada na anisotropia quadrupolar recebe especial atenção.




1. Introdução

Motivado pela publicação dos resultados parciais do observatório espacial Planck, volto-me agora para uma discussão breve das anisotropias da Radiação de Fundo de Micro-ondas (RFM), em particular de sua representação mais popular, qual seja, o seu espectro de potência.

A RFM pode ser representada bastante precisamente por um corpo negro de 2,7 K. Isto foi mostrado de forma extraordinária pelo observatório espacial COBE (Cosmic Background Explorer) e rendeu à equipe responsável por ele o prêmio Nobel de Física de 2006. O mérito desta premiação é questionável, no entanto, como eu relato no JC e-mail.

A RFM foi descoberta em 1964 pelos norte-americanos Arno Penzias e Robert Wilson, os quais foram agraciados com o prêmio Nobel de Física de 1978 por este feito. Desde então havia a suspeita de que a radiação era do tipo térmica, representada pelo espectro de radiação de um corpo negro, também conhecido como espectro de Planck. Esta foi uma homenagem ao físico alemão Max Planck (1858-1947), que em 1900 descobriu a sua formulação teórica, a lei da radiação térmica. Alguns aspectos da RFM foram discutidos em outro artigo de minha autoria intitulado A RFM e o espectro de corpo negro.

2. COBE

Os avanços observacionais em torno da RFM ocorreram de forma gradual até o lançamento da sonda COBE em 1989, destinada à sua observação. As observações do COBE representaram o fim da questão com a divulgação dos resultados no início da década de 1990. Ficou definitiva e extraordinariamente mostrado que a RFM é originária de um corpo negro, o qual é, muito provavelmente, o mais perfeito corpo negro da natureza. A figura abaixo ilustra esta afirmação.



Figura 1
A Radiação de Fundo de Micro-ondas observada pelo observatório espacial
COBE. A curva representa um corpo negro de 2,74 K, e os pontos com barras
de erro são os dados experimentais. O ajuste é o melhor ajuste experimental de
um corpo negro jamais obtido. É sempre bom lembrar que o fato da RFM ter
um espectro perfeito de corpo negro não implica que ela seja de origem cósmica
como considerado no Modelo Padrão da Cosmologia. A observação original de
Arno Penzias e Robert Wilson, os descobridores da RFM, corresponde a um
único ponto em λ = 73,5 mm, o qual não estava entre as observações do COBE.
Crédito da figura: equipe do COBE.


O observatório COBE também mostrou que a RFM era caracterizada por flutuações de temperatura por toda a esfera celeste, as chamadas anisotropias da RFM. Mas as observações eram de baixas resolução e sensibilidade. Em todo o caso, a existência das anisotropias foi aclamada com vigor pelos cosmólogos do MPC, pois elas eram extremamente necessárias no quadro cosmológico apresentado pelo MPC. Estas anisotropias são presumivelmente indicadoras de irregularidades existentes na distribuição do material cósmico quando a RFM foi formada, isto é, quando o universo tinha cerca de 300.000 anos de idade. Foram destas irregularidades primitivas que se desenvolveram as instabilidades gravitacionais que acabaram por dar origem às estrelas, galáxias e todas as outras estruturas cósmicas. Sem elas, nós mesmos não estaríamos aqui, segundo os partidários do MPC. Após o final da missão COBE foi proposto um observatório espacial, o WMAP, para medir apenas as anisotropias, com maiores resolução e sensibilidade. Com o grande sucesso do WMAP, novas questões surgiram, e maiores resolução e sensibilidade foram exigidas. Daí o lançamento do Planck que representa o estágio atual de nossa capacidade de investigar as anisotropias. E com certeza novas questões surgirão, as quais demandarão por maiores resolução e sensibilidade, e assim por diante. Este é o próprio caráter da pesquisa científica.

3. WMAP e Planck

A RFM e as suas anisotropias são observadas por toda a esfera celeste. A RFM será, por óbvia conveniência, identificada pela sua temperatura média e pelas flutuações associadas. Como representá-las quantitativamente? Existem várias maneiras possíveis, mas a mais apropriada, devido à geometria de sua distribuição espacial, na superfície esférica celeste, é a representação das temperaturas em uma série de harmônicos esféricos. Esta série é caracterizada pela combinação linear de multipolos identificados pela multiplicidade l (ver abaixo). As flutuações das anisotropias intrínsicas da RFM aparecerão ao serem removidas das observações as seguintes componentes:

A propósito, a representação em séries de harmônicos esféricos é muito utilizada em física. Ela é usada, por exemplo, na representação da distribuição tridimensional da nuvem eletrônica em um átomo. O conceito de orbital surge da representação geométrica de cada componente da série de harmônicos esféricos.

As flutuações da anisotropia são dadas por ΔT(θ,φ)/Tₒ, onde Tₒ=2,7 K e θ e φ são as coordenadas esféricas que localizam o ponto da esfera celeste, para o qual a flutuação é calculada. A flutuação da componente de dipolo (l=1) é da ordem de 0,001 e as flutuações dos multipolos superiores são pequeníssimas, ΔT/Tₒ ≈ 0,00001, correspondentes a flutuações absolutas ΔT da ordem de algumas dezenas de µK. Estas últimas são as anisotropias primitivas, inrínsicas, associadas às flutuações de temperatura existentes na época da formação da RFM.

O espectro de potência da RFM é uma medida da importância de cada multipolo na representação da série de harmônicos esféricos. Para se obtê-lo parte-se do campo de temperatura T(θ,φ), representado pela série de harmônicos esféricos dada por

, (1)

onde (θ,φ) é um ponto qualquer na esfera celeste e Ylm é chamada de função harmônica esférica de grau l e ordem m. Os índices l e m estão associados às coordenadas esféricas θ e φ, respectivamente. O espectro de potência é definido como o valor médio do quadrado dos coeficientes dos harmônicos esféricos:

. (2)
O teorema de adição das funções harmônicas esféricas e o fato delas constituírem uma base ortogonal implicam em que o espectro de potência será independente do índice azimutal m, sendo expresso apenas pelo índice l, o qual identifica os multipolos da anisotropia de temperaturas (para mais detalhes, veja o livro de Ronaldo E. de Souza, “Introdução à Cosmologia”, de 2004, à página 209).

Na prática, o espectro de potência acima é calculado a partir dos dados observacionais da RFM através do cálculo dos produtos


(3)

por toda a esfera celeste. ΔT(θ,φ) é a flutuação da temperatura no ponto (θ,φ). A separação angular Θ entre dois pontos quaisquer, identificados por pares (θ,φ), como na Eq. 3, está relacionada com o índice de multipolo da expansão em harmônicos esféricos da seguinte forma:

. (4)
Os mapas das anisotropias observadas pelo COBE, WMAP e Planck são mostrados na Fig. 1 do artigo A face do deus pagão da cosmologia moderna.

As figuras abaixo mostram os espectros de potência das flutuações da anisotropia da RFM observadas pelo WMAP e pelo seu sucessor, o Planck, cujos resultados acabam de ser divulgados. O múltipolo correspondente a l=0 — a temperatura média do campo Tₒ = 2,7 K — e a anisotropia de dipolo, correspondente a l=1, são removidos, antes do cálculo do espectro de potência. O primeiro ponto nos eixos das abscissas dos gráficos abaixo corresponde ao quadrupolo (l=2).



Figura 2
Espectro de potência das anisotropias da RFM observadas pelo WMAP.
Note a queda de potência para o quadrupolo (l=2), fora do ajuste do
MPC, mesmo considerando a variância cósmica (ver texto), representada
pela faixa azul na forma de corneta. Crédito da figura: equipe do WMAP.
Figura 3
Espectro de potência das anisotropias da RFM observadas pelo Planck.
A queda de potência para o quadrupolo (l=2) permanece, sendo agora
marginalmente fora do ajuste do MPC, mesmo considerando a variância
cósmica. Crédito da figura: equipe do Planck.


O que salta aos olhos numa primeira inspeção, é o aumento de resolução e de sensibilidade alcançada pelo Planck. O aumento da sensibilidade é indicado pelo aumento dos índices máximos de multipolos, os quais são aproximadamente 1.000 e 2.500 para o WMAP e para o Planck, respectivamente. E antes de mais nada uma advertência relativa ao aparente excelente ajuste teórico mostrado nos dois casos: o enorme número de parâmetros livres do MPC (quase 20!) permite essencialmente ajustes a quaisquer conjuntos de dados.

Os espectros são caracterizados por uma série de picos, cada um deles com um significado particular no MPC. Note que todas flutuações descritas pelo espectro de potência estão presentes nos dados observacionais da RFM mostrados na Fig. 1, os quais são perfeitamente explicados por um espectro de Planck de 2,7 K. As flutuações não fazem a mínima diferença no ajuste pois os desvios relativos introduzidos por elas são, como vimos, da ordem de 0,1% para anisotropia de dipolo e de 0,001% para as outras flutuações. A componente dominante nos dados é o monopolo (l=0) e, como se vê na Fig. 1, mesmo com a presença das flutuações de multipolos superiores o ajuste pelo espectro de corpo negro é perfeito.

Os picos do espectro de potência da RFM, de acordo com o MPC, representam os picos das oscilações acústicas — oscilações de um meio material — do plasma primordial. Quando a RFM se formou e se libertou do plasma estas oscilações ficaram impregnadas em sua distribuição de energia. A localização do primeiro pico em l∼200 (Θ∼1⁰), por exemplo, está diretamente relacionada ao parâmetro de densidade total do universo, ou seja, ele nos informa se o universo é aberto, fechado ou crítico. Os resultados tanto do WMAP quanto do Planck indicam que vivemos num universo crítico, que possui, como sabemos, geometria espacial global euclidiana. A amplitude — não a sua localização — do segundo pico acústico está diretamente relacionada à densidade total de bárions (essencialmente prótons e nêutrons) do universo.

4. Quadrupolo anômalo

Agora, tanto o WMAP quanto o Planck apresentam um problema sério e que já foi explorado em 2003, para a proposição de um modelo alternativo ao MPC, pelo cosmólogo francês Jean-Pierre Luminet e colaboradores. Trata-se da queda de potência para a anisotropia de quadrupolo, l=2, Θ=90⁰ (eq. 4).

Em algumas representações do espectro de potência do WMAP este detalhe tem sido, de certa forma, oculto pela forma de apresentação do diagrama — não é o caso, no entanto, das duas representações mostradas nas Figs. 2 e 3. O renomado físico teórico britânico Roger Penrose, em seu enciclopédico “The Road to Reality”, de 2007, à página 775, na legenda de sua figura 28.19 (veja reprodução na Fig. 4), que apresenta o espectro de potências da RFM do WMAP, afirma “Be sure to notice the very significant discrepancy at the quadrupole (l=2), almost hidden (accidentally?) by the vertical axis.” Qual é a implicação tão grave desta discrepância, a ponto de levar a equipe de pesquisadores do WMAP a querer ocultá-la?



Figura 4
Figura 28.19, pág. 775, do livro “The Road to Reality”, 2007, de Roger
Penrose (veja texto). Um símbolo × vermelho, próximo do zero, no eixo
vertical, assinala a anisotropia quadrupolar observada pelo WMAP. Apenas
um olhar atento consegue perceber este ponto, totalmente discrepante do
ajuste teórico. O conceito de variância cósmica ainda não era utilizado para
tentar justificar a discrepância, como nas Figs. 2 e 3. Crédito da figura: equipe
do WMAP.


Em geral, a queda de potência para oscilações de comprimentos de onda longos (≥ 60⁰) indicam que o universo deve ser finito. Quer dizer, não tem tamanho suficiente para suportar oscilações longas. Mais ou menos como a impossibilidade de um violino produzir as ondas longas dos graves de um violoncelo. Note que, como dito acima, para o quadrupolo l=2, correspondente a uma escala angular para a flutuação Θ≈90⁰. Isto vai frontalmente contra o MPC que é espacialmente infinito e deveria apresentar as oscilações longas com a mesma potência. E o que é pior, a discrepância observada nos dados do WMAP foi confirmada pelo Planck de forma contundente. Em 2003, logo após a divulgação dos dados do WMAP, um grupo francês, sob a liderança de Jean-Pierre Luminet, causou alvoroço com a proposição de um modelo cosmológico relativista, alternativo ao MPC, fechado e de seção espacial finita. Na época, o modelo foi chamado de “modelo da bola de futebol” (ver COSMOS:27abr07 para mais informações, inclusive no artigo de Luminet lá citado). O modelo está brilhantemente descrito na revista Ciência Hoje, num artigo de divulgação científica, de Evelise Gausmann e Jean-Pierre Luminet, intitulado Universo – uma miragem topológica?.

E como os partidários do MPC tentam se safar deste problema? Utilizando uma limitação, que eles atribuem à característica física do problema, ou seja, uma possível limitação natural, denominada variância cósmica. Como vimos, o problema aparece repetidamente, no WMAP e no Planck. Mas o que vem a ser “variância cósmica”?

A variância cósmica é uma incerteza natural na determinação dos espectros de potência, teórico e observacional, devido à existência de um limite espacial de observação no universo. O universo é limitado pelo tamanho finito do horizonte de distância observável que, nos modelos cosmológicos de idade finita, representa a distância máxima que podemos observar a partir da Terra. Isto faz com que a amostragem estatística de multipolos com pequeno l (grandes escalas angulares) seja pequena em comparação com os multipolos de pequena escala angular. A consequência disto é a introdução de um erro estatístico intrínsico que é tanto maior quanto menor é o valor de l. As faixas azuis nas formas de cornetas, que aparecem nas Figs. 2 e 3, representam estes erros na curva teórica, e como se vê ele é máximo para a componente de quadrupolo (l=2).

Existem pelo menos duas possibilidades: ou atribui-se a discrepância observada do quadrupolo, no contexto do MPC, à variância cósmica, ou atribui-se à finitude espacial do universo — como fizeram Luminet e colaboradores —, caso em que a variância cósmica teria pouca influência. É claro que outras alternativas ao MPC, para a explicação da discrepância, certamente devem existir.

No caso da consideração da variância cósmica no MPC, testemunhamos claramente uma anomalia. A variância cósmica introduz incertezas para mais ou para menos, mas o que se vê, sistematicamente, no WMAP e no Planck, é uma diferença de potência do quadrupolo para menos. Então, teríamos uma indicação de que não é um problema de amostragem insuficiente, mas sim a consequência de um universo finito espacialmente. Obviamente, os partidários do MPC nunca aceitarão isto, mas proporão, como alternativa, o lançamento de mais um observatório espacial, com maiores resolução e sensibilidade, para resolver a questão. Resolvendo ou não, isto é muito bom para a ciência da cosmologia, pois melhores dados em breve estarão disponíveis.



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