Domingos Soares
Departamento de Física,
Universidade Federal de Minas Gerais
C.P. 702, 30123-970, Belo Horizonte, MG
E-mail: dsoares@fisica.ufmg.br
20 de julho de 2010
Discuto alguns aspectos relacionados à Radiação de Fundo de Micro-ondas (RFM), no contexto do modelo padrão da cosmologia, também denominado modelo do Estrondão Quente.
O universo, segundo o modelo padrão, evolui de uma fase dominada pela radiação até uma fase dominada, primeiro, pela matéria e, presentemente, pela energia escura.
Após a entrada na era da matéria ocorre uma outra grande transição. A radiação que até então era fortemente acoplada à matéria sofre uma transição progressiva para o total desacoplamento e passa a viajar sem qualquer impedimento pelo universo em expansão.
Um fato extraordinário: o equilíbrio térmico durante a fase de acoplamento gerou uma distribuição de radiação segundo um espectro de Planck — o espectro de corpo negro. Após o desacoplamento a radiação se dilui, mas preservando este espectro característico, até os dias atuais.
A primeira época em que ocorreu o espectro térmico foi na fotosfera cosmológica, quando o desacoplamento estava em pleno andamento. Este é caracterizado por uma transição desde uma barreira intransponível, devido ao espalhamento Thomson dominante até a fase de total desacoplamento da matéria, quando a radiação passou a se propagar totalmente livre.
Várias questões podem ser formuladas. Algumas:
1- Como se demonstra a preservação do espectro de corpo negro, gerado na fase de acoplamento matéria-radiação, na fase seguinte de expansão e propagação livre da radiação?
Durante a expansão, o comprimento de onda da radiação λ aumenta proporcionalmente ao aumento do fator de escala a(t), λ∝a(t). Um número inteiro de comprimentos de onda deve preencher o universo em cada instante, como ilustrado na figura.
O astrofísico P.J.E. Peebles (1993, pág. 134) parte daí e apresenta duas explicações para a preservação do espectro de corpo negro da RFM após o desacoplamento, e durante a expansão. A mais simples delas é a seguinte.
Em dada temperatura T, o número de ocupação, ou número médio N de fótons por modo de oscilação (frequência), é dado pela função de Planck,
Na faixa de comprimentos de onda observados, as frequências da RFM são muito maiores do que a taxa de expansão do universo, dada pelo parâmetro de Hubble H. Isto significa que a evolução temporal dos comprimentos de onda da RFM é adiabática, e então, na ausência de interações com outros campos, o número de fótons para cada modo de oscilação é conservado, i.e., N é independente do tempo.
Assim, sendo N constante, tem-se Tλ = constante, e a temperatura associada com o modo deve obedecer à relação de escala
pois, como vimos anteriormente, λ∝a(t).
Durante a expansão, a temperatura da radiação é, portanto, independente do comprimento de onda. Como a radiação está inicialmente em equilíbrio térmico, a temperatura é a mesma para todos os modos e permanece independente do comprimento de onda. Isto significa dizer que o espectro da radiação permanece o de um corpo negro, como era inicialmente.
Finalmente, conclui-se que a temperatura da RFM possui a seguinte dependência com a expansão do universo, dada pelo fator de escala a(t):
onde z é o desvio para o vermelho, dado por 1+z=a(to) ⁄ a(t).
O desacoplamento matéria-radiação ocorreu à temperatura de ≈ 3000 K (de Souza 2004, cap. 6). A temperatura atual (z=0) é de 3 K, logo, o desacoplamento ocorreu no desvio para o vermelho de aproximadamente 1000. Este é o maior desvio para o vermelho possível de ser acessado através das ondas eletromagnéticas, de acordo com o Estrondão Quente.
A determinação observacional do espectro da RFM é uma tarefa de extrema complexidade experimental. O satélite COBE realizou esta tarefa de forma brilhante, mas anda não houve uma repetição experimental do feito. As missões WMAP e Planck são dedicadas à medida das anisotropias da RFM.
2- Por que as primeiras estruturas teriam se formado ao redor da fase de desacoplamento? (cf. de Souza, 2004, cap. 6). Afinal, a condição de predominância da pressão gravitacional sobre a pressão de radiação é uma função da densidade de matéria e, em princípio, pode correr em qualquer época.
Não, não pode. A época do desacoplamento possui duas características que contribuem para favorecer o colapso gravitacional, quais sejam, (i) a radiação exerce menor pressão e (ii) a matéria pode colapsar e irradiar a energia gravitacional perdida no colapso via transições eletrônicas, pois a matéria não está mais completamente ionizada. Anteriormente à fase de desacoplamento, o colapso gravitacional seria interrompido devido à enorme energia térmica gerada pela perda de energia gravitacional, e que não poderia ser irradiada, já que a matéria se encontrava completamente ionizada. A conservação da energia durante o colapso deve ser obedecida, o que implica na deposição da energia gravitacional perdida em energia cinética ("térmica") da matéria em processo de colapso gravitacional. Além disso, temos a enorme pressão de radiação, pois a radiação está fortemente acoplada à matéria.
Referências
Peebles, P.J.E. (1993), Principles of Physical Cosmology, Princeton University Press, Princeton
de Souza, R.E. (2004), Introdução à Cosmologia, EDUSP, São Paulo
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