A inflação cósmica: fé de mais


Domingos Soares

21 de março de 2014

Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam,
e a prova das coisas que se não veem.

Hebreus 11, 1 — Paulo de Tarso, ca. 70
Andar com fé eu vou,
que a fé não costuma “faiá”.

Andar com fé — Gilberto Gil, 1985

Prólogo

Este artigo trata essencialmente de questões de fé. As palavras do sábio turco apresentam a definição de fé, enquanto que os versos do músico baiano declaram o otimismo em relação às perspectivas de seus desígnios. O conceito de fé, eminentemente religioso, tem também o seu lugar no domínio científico, mas sempre em pequeníssima dose. De fato, a fé é inerente a toda e qualquer atividade humana. Ela só chama a atenção quando presente em doses elevadas, ou seja, fé de mais assusta, pela desvinculação exagerada da realidade. Em outras palavras, anuncia comportamento irregular. Tratarei de um caso destes, no domínio da ciência, especificamente, na cosmologia moderna, no Modelo Padrão da Cosmologia (MPC).

O MPC, conhecido vulgarmente como Modelo do Big Bang ou do Estrondão, é um exemplo vivo onde a fé é de mais. O modelo só prevalece porque os seus defensores têm a inabalável fé de que várias suposições inerentes ao MPC um dia tornar-se-ão comprovadas. A inflação cósmica é uma destas suposições. Menciono outras a seguir, associadas ao balanço de matéria-energia do universo, segundo o MPC.

O modelo atual do universo é espacialmente plano. O espaço-tempo é curvo já que, neste instante cósmico, o modelo possui expansão acelerada. A aceleração é causada pela energia escura.

No balanço descrito acima há pelo menos três artigos de fé. O modelo exige matéria bariônica, que é outro nome para a matéria usual, constituída por prótons e nêutrons, em quantidade superior ao que é observado. Há dezenas de anos tem-se a fé de que em algum dia os bárions faltantes serão encontrados. O MPC exige também grande quantidade de matéria exótica, a chamada matéria não bariônica. Há mais de 30 anos tem-se a fé de que ela será encontrada, apesar de não se saber nem o que ela seja. E agora o artigo de fé maior, a crença no “monstro” desconhecido da energia escura, a qual acelera a expansão do universo e nos remete a um futuro em que até os constituintes mais básicos da matéria serão finalmente desintegrados! Tal excrescência natural, cuja existência foi proposta há mais de 20 anos, é totalmente desconhecida — sabe-se apenas que deve ser uma forma de energia. Existem inúmeras teorias sobre a sua natureza, mas permanece a inabalável fé de que um dia ela será encontrada.

Em cima de tudo isto, em cima de fé de mais, ainda sobra espaço para mais um artigo de fé, qual seja, a inflação cósmica, o objeto deste singelo artigo.

A notícia

No dia 17 de março passado, o Harvard-Smithonian Center for Astrophysics anunciou em nota para a imprensa, sob o título “Primeira Evidência Direta da Inflação Cósmica”, a seguinte notícia:
“Há quase 14 bilhões de anos, o universo em que habitamos explodiu para existência em um extraordinário evento que iniciou o Estrondão. Na primeira fugaz fração de um segundo, o universo expandiu exponencialmente, esticando-se muito além da visão de nossos melhores telescópios. Tudo isto, é claro, era apenas teoria.

Pesquisadores da colaboração BICEP2 anunciaram hoje a primeira evidência direta desta inflação cósmica. Seus dados representam também as primeiras imagens de ondas gravitacionais, ou ondulações no espaço-tempo. Tais ondas têm sido descritas como os “primeiros tremores do Estrondão”. Finalmente, os dados confirmam uma conexão profunda entre mecânica quântica e relatividade geral.

(...)”

A nota completa está em https://pweb.cfa.harvard.edu/news/.

Comentarei os dois primeiros parágrafos reproduzidos em tradução livre acima. Trata-se de uma pérola da arrogância pseudocientífica que assola a comunidade cosmológica dominante, cujo fundamento é a fé. Vamos lá.

O extraordinário evento que, do nada, explodiu é a inflação cósmica, ou seja, uma perturbação estrondosa na quietude e limpidez do nada. Foi esta perturbação provocada por algo ou por alguém? Muito bem, ela foi provocada por Alan Guth, através de palavras escritas em 1980 no prestigioso periódico científico estadunidense Physical Review D. Guth, britanicamente, deu o preciso instante do ocorrido: é a tal “fugaz fração de um segundo” mencionada acima. A poesia dos termos diminui o impacto do que Guth quis dizer, i.e., a fração de 1 segundo dividido por dez trilhões de trilhões de trilhões. Em potência de dez: 10-37 segundo. Foi este o momento da ocorrência extraordinária. Em seguida a nota comete um salto extemporâneo: o universo expandiu (...) muito além da visão de nossos melhores telescópios. O universo criado pela inflação é muito maior do que a “pequena” porção que tornar-se-ia acessível aos observadores humanos.

BICEP, Background Imaging of Cosmic Extragalactic Polarization (Imageamento do Fundo de Polarização Extragaláctica Cósmica), é o nome genérico de uma série de experimentos destinados a medir a polarização da Radiação de Fundo de Micro-ondas (RFM). BICEP2 é um destes experimentos. Trata-se de um radiotelescópio localizado no Polo Sul, onde o meio ambiente seco, gelado e com enorme limpidez atmosférica reproduzem da melhor forma, em terra, as condições prevalecentes em um observatório espacial. Pois bem, os pesquisadores do BICEP2 encontraram os sinais da inflação cósmica, ocorrida há 14 bilhões de anos. Mesmo tendo sido produzidos há tanto tempo, eles foram detectados agora. E com a fidedignidade suficiente a ponto de serem anunciados em vários meios científicos e leigos de comunicação. A putativa descoberta justifica desta forma todos os recursos financeiros nela investidos. E tem mais. Não só a inflação cósmica foi evidenciada. De um só golpe, o BICEP2 esclareceu vários outros mistérios da ciência moderna: a existência das ondas gravitacionais, uma previsão ainda não comprovada da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein (1879-1955) e a natureza quântica da própria gravitação einsteiniana. Não é só isto, no entanto. Para que a inflação cósmica seja uma realidade é necessário que o próprio MPC seja válido! Então, de quebra, o BICEP2 comprovou necessariamente a existência da matéria escura bariônica, da matéria escura não bariônica e da energia escura. Nada mal para um só experimento. Bota fé que a fé não costuma “faiá”, canta o bom baiano.

O Estrondão

Deixemos de pessimismo, tenhamos fé, e falemos um pouco sobre as realizações do BICEP2. Farei o possível para explicar o que eu mesmo tentei entender a partir das diversas notas entusiasmadas divulgadas recentemente. Farei primeiro uma analogia do tecido espaçotemporal com a superfície tranquila e límpida de um lago. Peçamos a ajuda de Alan Guth em nossa história. Quer dizer, vamos agora brincar de Guth.

Guth lança uma pedra para o alto, de forma que ela caia sobre o lago. A pedra produzirá ondas circulares que se propagarão pela superfície do lago. Estas ondas, diremos, são circularmente polarizadas. Mas ao mesmo tempo em que estas ondas circulares são produzidas também o são outras ondas de polarizações diferentes, as quais são imperceptíveis aos nossos olhos. Outros modos de polarização são produzidos, na linguagem da polarimetria. Entre estes modos estão modos lineares, i.e., perturbações lineares na superfície do lago, semelhantes às oscilações para frente e para trás de uma criança numa gangorra.

Voltemos agora ao nosso objeto, a inflação cósmica. Guth joga agora uma “pedra”, que tem o sugestivo nome de infláton, sobre a singeleza do nada — atenção, o tecido espaçotemporal ainda não existe. Guth vai criá-lo com o infláton, através dos eventos que se seguem. Duas coisas simultâneas ocorrem: o infláton cria o tecido do espaço-tempo e perturba-o, como uma pedra o faz na superfície do lago. As ondas produzidas no tecido espaçotemporal denominam-se ondas gravitacionais. São análogas às ondas mecânicas que ocorrem na superfície do lago. Da mesma forma como ocorre no lago, temos aqui também vários modos de polarização.

As ondas gravitacionais, por sua vez, produzem perturbações equivalentes na RFM. A RFM torna-se, portanto, polarizada com vários modos diferentes. O modo detectado pelo BICEP2 foi um modo linear, devido a facilidades experimentais, apesar desta perturbação ser muito menor do que outros modos. A RFM é um fundo observado no céu em micro-ondas extremamente uniforme. O modo detectado pelo BICEP2 representa um contraste na lisura da RFM de 1 parte em 10.000.000. O que significa isto? Pense na superfície espelhada de um telescópio, por exemplo, o conhecido Telescópio Espacial Hubble. O seu espelho possui falhas de lisura de 1 parte em 10, no máximo! Agora, 1 parte em dez milhões corresponde a um desvio de lisura extraordinariamente pequeno e, consequentemente, extremamente difícil de ser observado experimentalmente, principalmente se considerarmos a enorme quantidade de fontes de ruído — instrumentais e de emissões celestes espúrias — existentes, e que perturbam em conjunto a lisura da RFM.

Epílogo

A evidência da inflação cósmica é esta perturbação de 1 parte em dez milhões. E ela foi encontrada. Não tenhamos dúvida, tenhamos fé, o firme fundamento das coisas que se esperam.

Termino pedindo desculpas por qualquer coisa, os erros são meus. Afinal de contas, eu não sou Guth.


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