Mancadas einsteinianas

(http://arXiv.org/abs/physics/0502142)



Domingos S.L. Soares

Departamento de Física, ICEx, UFMG -- C.P. 702
30161-970, Belo Horizonte -- Brazil
E-mail: dsoares@fisica.ufmg.br

23 de fevereiro de 2005




`Certamente não devemos menosprezar a evidência dos fatos experimentais em favor dos sonhos e das vãs imaginações de nosso devaneio pessoal'

"Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", Livro III --- I. Newton, 1687




Resumo

O Ano Mundial da Física 2005 celebra Einstein 1905. Uma celebração excessiva de uma única personalidade pode ser prejudicial, como comportamento padrão, para a geração mais jovem. Com esta idéia em mente, eu comento alguns episódios da carreira científica de Einstein, os quais são até certo ponto, caracterizados por comportamentos que poderiam ser identificados como verdadeiras mancadas. O objetivo final é obviamente humanizar o personagem, em contraposição à tendência presente de deificação.


1. Introdução

``O Ano Mundial da Física 2005 é uma celebração internacional da física patrocinada pelas Nações Unidas. Ao longo do ano eventos salientarão a vitalidade da física e a sua importância no próximo milênio, e comemorarão as contribuições pioneiras de Albert Einstein em 1905"

Esta é a declaração de abertura que aparece na página eletrônica http://www.physics2005.org , a qual se dedica à divulgação do Ano Mundial da Física. A idéia parece ser, primeiro, celebrar a física, e, segundo, comemorar Einstein. Contudo, nota-se sem muito esforço que já, no começo do ano, tem havido excessiva atenção, através de escritos e manifestações diversas nos meios audio-visuais sobre a figura de Einstein, com uma destacada tendência à idolatria científica, característica inimaginável em ciência. Nós, cientistas, temos presumivelmente que respeitar unicamente a Natureza como fonte de inspiração para as nossas atividades, tanto no domínio experimental quanto no teórico.

Está fora de questão que 1905 foi o annus mirabilis de Einstein. Naquele ano, o mundo testemunhou a publicação de três obras-primas da literatura científica contemporânea. Foram elas, o trabalho sobre o movimento browniano, estabelecendo a realidade dos átomos, o trabalho sobre o efeito fotoelétrico, estabelecendo os quanta de radiação, e a Teoria da Relatividade Especial. Mas Einstein não foi único neste aspecto. Houve um antecedente de tal momento brilhante na história da ciência: 1666 é assinalado como o annus mirabilis de Isaac Newton. De 1665 a 1667, ele também abriu as portas para três novas áreas da pesquisa científica, a saber, ele lançou os fundamentos do cálculo diferencial e integral, desenvolveu a teoria das cores, e propôs a sua teoria de gravitação universal. A publicação em 1687 de sua maior obra, os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, marcou o início de uma nova era no empreendimento científico, de forma geral. Há portanto um claro paralelo com a contribuição de Einstein para a ciência moderna.

Nas três seções seguintes eu comento sobre aspectos da vida científica de Einstein que são geralmente vistos com uma aceitação respeitosa, apesar de constituirem-se em maus exemplos de comportamento científico.


2. A constante cosmológica

Num importante artigo publicado nos Anais da Academia Real Prussiana de Ciências, em 1917, intitulado ``Kosmologische Betrachtungen zur Allgemeinen Relativitätstheorie'', i.e., "Considerações Cosmológicas na Teoria da Relatividade Geral'', Einstein inaugurou a era da cosmologia mooderna aplicando as suas idéias da Relatividade Geral ao universo como um todo. Para este fim, ele abandonou as suas equações de campo originais em favor de uma nova lei na qual havia um termo constante adicional, que representa um potencial gravitacional constante repulsivo. O termo fornece uma pequena força repulsiva próximo à origem mas que aumenta diretamente proporcional à distância -- potencial constante -- até contrabalançar a atração gravitacional entre as massas do universo, para grandes distâncias. A sua intenção era obviamente obter um modelo estático. É bom lembrar que, naquele tempo, mesmo as galáxias não eram reconhecidas como entidades cosmológicas. Somente no final da década de 1920, com o trabalho do astrônomo Edwin Hubble, a existência das galáxias veio a ser definitivamente comprovada. As soluções que Einstein tinha obtido inicialmente com a aplicação das equações de campo originais eram instáveis e levavam ao colapso gravitacional do modelo. A modificação preservava a covariância geral da teoria -- requisito formal -- e resolvia o problema da instabilidade (North 1990, capítulo 5). A constante tornou-se conhecida como a constante cosmológica, e é até hoje matéria de muito debate.

Descrevo a seguir alguns fatos que levaram à mancada einsteiniana neste contexto. E no final das contas, ela parece ser na verdade uma mancada dupla, como eu sugiro abaixo.

A introdução da constante cosmológica levou a um grande debate concernente aos muitos aspectos dos novos horizontes abertos pela Relatividade Geral em relação ao universo. Um modelo infinito possui claros problemas de condições de contorno, algo que era reconhecido mesmo para uma cosmologia newtoniana (ver Harrison 2000, capítulo 16). Com a constante cosmológica, Einstein resolveu todos os problemas, introduzindo um modelo finito, espacialmente fechado e estático, esta última característica sendo derivada das crenças de Einstein -- e da maioria dos cientistas da época -- relativas ao mundo físico.

Contudo, Einstein veio posteriormente a rejeitar a sua própria modificação das equações de campo da Relatividade Geral. North (1990, p. 86) assinala que já por volta de 1919, Einstein considerava que a introdução da constante fora ``seriamnete perniciosa quanto à beleza formal da teoria'' ; ele a considerava como uma adição ad hoc às equações de campo. Mais tarde ele teve as suas convicções, quanto à rejeição, reforçadas devido a dois novos desenvolvimentos científicos: pelo lado observacional, o trabalho de Hubble na relação desvio para o vermelho-distância, para as galáxias, estava sendo interpretado como uma indicação de um universo em expansão 1 -- as soluções estáticas eram desnecessárias --, e pelo lado teórico, a solução de 1922, das equações de campo pelo Russo Aleksandr Friedmann, e a solução de 1927, do Belga Georges Lemaître, as quais admitiam modelos em expansão.

George Gamov (1970) conta a estória, que se tornou legendária, de que numa ocasião Einstein lhe dissera que a constante cosmológica fora a ``minha maior mancada.'' 2

Mas porque tratar-se de uma mancada dupla? Einstein rejeitou a constante cosmológica baseado nas inconsistências física e estética, que ele acreditava existirem, como resultado de sua adoção. Aqui ele viu a sua mancada, a sua maior mancada. Por outro lado, do ponto de vista estritamente teórico e formal, a Relatividade é de fato enriquecida pela adição do novo termo, ao mesmo tempo em que ainda mantém as suas características de uma teoria covariante, viável e geral, de gravitação. Daqui provém o carácter duplo da mancada. O fato de abandonar a constante constitui uma mancada em cima de outra. Esta impressão é sugerida também por North (p. 86), o qual escreve que ``ele finalmente descartou o termo em 1931, e ao fazer isto, deliberadamente restringiu a generalidade de sua teoria.''

Reivindicações recentes -- a partir do final da década de 1990 -- de um universo em expansão acelerada têm levado a uma ``ressurreição'' da constante cosmológica, que poderia fornecer a repulsão cósmica responsável pela aceleração. Esta idéia, e inúmeras outras variantes, tornaram-se uma feição dominante da cosmologia moderna. O status quo presente da cosmologia moderna não está entretanto livre de oposição. Um exemplo dela materializou-se recentemente numa Carta Aberta à Comunidade Científica (Lerner 2004).

3. O eclípse solar de 1919

As reações de Einstein aos resultados científicos obtidos a partir do eclípse solar total de 1919 são descritos em uma de suas biografias (Bernstein 1975, p. 123). O assunto principal era o desvio da trajetória da luz por uma fonte gravitacional, e a ocasião era extremamente apropriada para os testes observacionais da teoria da Relatividade Geral.

Duas expedições astronômicas foram organizadas por Sir Arthur Eddington, renomado cientista e amigo de Einstein. Uma das expedições dirigiu-se ao nordeste do Brasil e outra para a ilha do Príncipe, na costa Africana. O objetivo de ambas era medir com precisão as posições das estrelas em torno do disco solar, durante o eclípse de 29 de maio de 1919. Ilse Rosenthal-Schneider, estudante de Einstein, conta que a sua primeira reação às notícias de que as medidas apontavam para uma concordância com a predição da Relatividade Geral foi: ``-- Eu sabia que a teoria é correta.''

Ela perguntou a ele: ``-- O que teria acontecido se não fossem confirmadas as suas previsões?'' Einstein então respondeu: ``-- Da könnt' mir halt der liebe Gott leid tun, die Theorie stimmt doch'', ou, ``-- Então eu lamentaria pelo bom Deus, mas a teoria está correta.''

Seria esta uma reação aceitável vinda de um teórico, quando confrontado com fatos experimentais ou observacionais que fossem importantes no contexto de sua teoria? Certamente que não.

4. Einstein encontra-se com Hubble

O protagonista aqui é outro Einstein, ou melhor, outra: Elsa Einstein, a segunda esposa do cientista. Ela é descrita às vezes como uma mulher de carácter um tanto frívolo e personalidade pouco profunda (ver Pais 1995). A estória aparece em muitas fontes biográficas, didáticas e científicas. A versão que apresentarei consta da biografia do grande astrônomo extragaláctico Edwin Powell Hubble, reputada como provavelmente a melhor de todas (Christianson 1995). Hubble foi quem provou definitivamente a existência das galáxias, e seria agraciado com o prêmio Nobel de física, no início da década de 1950, não fosse por sua morte prematura em 1953 (para uma descrição mais detalhada, ver Soares 2001).

A visita de Einstein aos institutos do Caltech, nos Estados Unidos, em 1931, fora motivada pela sua curiosidade pelo trabalho em física-matemática de Richard Tolman, relacionados à relatividade, e pelo trabalho observacional de Hubble, no Observatório de Monte Wilson, na Califórnia.

Ele e a esposa fizeram a primeira excursão à montanha, onde se localiza o Observatório, em meados de fevereiro. Eles estavam acompanhados de Hubble e outros.

O grupo visitou todas as instalações do Observatório, inclusive a cúpula do telescópio de 2,5 m de abertura, denominado telescópio Hooker. Este era na época o maior telescópio do mundo, e nele estavam sendo conduzidos os trabalhos pioneiros de Hubble em astronomia extragaláctica.

O biógrafo de Hubble, em certo ponto, escreve (p. 206): ``Quando Elsa Einstein, que parecia sempre estar na defensiva, ouviu que o gigantesco telescópio Hooker foi essencial para a determinação da estrutura do universo, testemunhas afirmam que ela teria replicado, `Ora, ora, meu marido faz isto nas costas de um envelope usado.' ''

Da mesma forma que na seção anterior, vê-se aqui um certo menosprezo pela ciência experimental, neste caso, pelas atividades observacionais.

Poder-se-ia argumentar que não se trata aqui de mancada einsteiniana legítima, desde que foi a Sra. Elsa quem declarou as palavras acima. Temos dois contra-argumentos contra essa interpretação: o argumento na forma fraca e o argumento na forma forte. Em sua forma fraca, o contra-argumento constitui-se apenas num jogo de palavras e pode ser colocado da seguinte forma: ``Elsa é Einstein, portanto trata-se de uma mancada einsteiniana.'' O argumento forte é o de que o episódio aparece frequentemente nas biografias de Einstein e Hubble, e em textos de naturezas diversas, onde a participação de Einstein é lembrada. Trata-se claramente de uma característica einsteiniana. Como tal ela deve ser, com toda justiça, incluída na galeria das autênticas mancadas einsteinianas.

5. Considerações finais

É compreensível que entre nós, físicos e astrônomos, se manifeste uma atitude de verdadeira reverência por Albert Einstein. Ele é sem dúvida o maior cientista do século XX. Esta espécie de adoração pode ser vista em muitos lugares. Por exemplo, a mais celebrada das biografias de Einstein, a saber, aquela de autoria do físico teórico Abraham Pais (Pais 1995) é fortemente contaminada por este viés sentimental. Ele adota a tendência conformista de evitar tocar nos assuntos ``desconfortáveis'', tanto pessoais quanto científicos, da vida de Einstein (para mais detalhes, ver Soares 2003).

O leitor certamente deve ter observado que nenhum dos casos relatados acima refere-se a quaisquer dos trabalhos do annus mirabilis de Einstein. Eles estão de certa forma relacionados à Teoria da Relatividade Geral, a qual foi desenvolvida nos dez -- ou mais -- anos posteriores. A explicação para este desvio é simples. Trata-se de um efeito de seleção, dado que o autor do presente artigo é um astrônomo extragaláctico. Em outras palavras, isto não significa que Einstein não tenha cometido mancadas relacionadas àquele período. Elas podem ser garimpadas, por exemplo, no mencionado livro de Abraham Pais. Neste caso específico, não sem considerável esforço, em vista do comentário feito no parágrafo anterior.

E a respeito da primeira bomba atômica mundial? Certamente o fato não pode ser incluído no contexto de uma mancada einsteiniana, apesar de seu envolvimento decisivo na questão, especialmente pelo lado político (ver Pais 1995 para detalhes). A bomba foi, antes de mais nada, a maior mancada mundial.

A imparcialidade científica exclui, por definição, a reverência e o culto de personalidade. Errar é humano e Einstein errou em muitas ocasiões. Estas são as mensagens aqui contidas para as novas gerações de estudantes e cientistas.

Finalmente, velhos e jovens, nunca nos esqueçamos do famoso dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, o qual sempre dizia que ``toda unanimidade é burra.'' Realmente.

Referências

Bernstein, J. 1975, As Idéias de Einstein, Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo

Christianson, G.E. 1995, Edwin Hubble: Mariner of the Nebulae, The University of Chicago Press, Chicago

Gamov, G. 1970, My World Line, Vicking Press, New York

Harrison, E.R. 2000, Cosmology, the Science of the Universe, Cambridge University Press, Cambridge

Lerner, E. 2004, Bucking the Big Bang, New Scientist, 182 (2448), 20

North, J.D. 1990, The Measure of the Universe: A History of Modern Cosmology, Dover Publications, Inc., New York

Pais, A. 1995, Sutil é o Senhor...: a ciência e a vida de Albert Einstein, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro

Soares, D.S.L. 2001, Hubble's Nobel Prize, The Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, 95, 10 (O Prêmio Nobel de Hubble em http://www.observatorio.ufmg.br/pas17.htm)

Soares, D.S.L. 2003, Sutil é o Senhor... Abraham Pais, http://www.fisica.ufmg.br/~dsoares/abpais/abpais.htm





 

1 É importante salientar, a esta altura, que a interpretação da relação desvio para o vermelho-distância de Hubble como indicativa de um universo em expansão somente é verdadeira quando se tem por garantido que a teoria subjacente sob consideração, i.e., a Relatividade Geral na cosmologia moderna, é verdadeira. Tal consideração é ainda assunto bastante debatido, desde que os modelos cosmológicos atuais têm levado a uma variedade de hipóteses relativas ao conteúdo de matéria-energia do universo, tais como, matéria escura bariônica, matéria escura não bariônica, e a ainda mais misteriosa energia escura. Nenhum destes supostos componentes do universo tiveram, até agora, a sua existência comprovada por quaisquer meios experimentais ou observacionais. Volta.

2 Esta afirmativa, é claro, justifica inteiramente o título do presente artigo: se Einstein admite a sua ``maior'' mancada, isto implica na existência da ``menor'', e de outras mancadas de graduações diversas entre as duas. Volta.



Domingos Sávio de Lima Soares
01 de março de 2005