21 de maio de 2015
Joel Primack é um dos mais importantes cosmólogos da atualidade. Em seu trabalho, tanto de pesquisa quanto de divulgação científica, ele utiliza imagens de várias naturezas para ilustrar as suas ideias. O universo teórico da cosmologia moderna é caracterizado por um conteúdo de matéria e energia que é 99,5% “escuro”, i.e., não observado. Apresento e discuto algumas das imagens utilizadas por Joel Primack e seus colaboradores na ilustração da “escuridão” deste universo.
Em apresentação recente, ele discute a fundo o estado atual da cosmologia moderna, representada pelo MPC, também conhecido como “modelo da concordância” e, ainda, modelo ΛCDM (veja o esmiuçamento desta sigla no primeiro parágrafo de COSMOS:08abr14). Primack proferiu uma palestra como convidado da “Philosophy of Cosmology conference”, em Tenerife, Espanha, em setembro de 2014. O artigo referente à palestra só agora aparece no arXiv. O título da palestra é bastante sugestivo: Cosmological Structure Formation. A discussão da formação de estruturas no universo — estrelas, galáxias, aglomerados e superaglomerados de galáxias, etc. — é bastante ampla e faz com que Primack abranja toda a cosmologia do ponto de vista de sua pesquisa e de seus colaboradores.
Antes de continuar, devo dizer que Joel Primack (e sua esposa Nancy Abrams) são velhos conhecidos. Alguns de vocês devem se lembrar do ano de 2008, quando os dois proferiram uma palestra na UFMG. Eles falaram sobre cosmologia, centrados em livro que acabavam de lançar no Brasil (Panorama visto do centro do universo: a descoberta de nosso extradinário lugar no cosmos, Companhia das Letras, São Paulo, 2008; há um exemplar na biblioteca do Departamento de Física da UFMG, onde vocês encontrarão também um DVD sobre a palestra e que contém também depoimentos de vários professores da UFMG — inclusive o meu). A propósito, sob o meu aconselhamento, os organizadores do evento trouxeram Joel e Nancy à UFMG; não me arrependo do conselho, apesar de discordar em vários pontos de suas opiniôes científicas e filosóficas. Joel Primack é figura importante na pesquisa cosmológica dos últimos 50 anos. A repercussão da palestra de Joel e Nancy aparece no texto que escrevi sobre a palestra, em COSMOS:22out08 e em COSMOS:28out08.
Apresentarei e discutirei a seguir várias imagens relacionadas à escuridão do universo do MPC e terminarei com algumas das conclusões de Primack apresentadas em sua conferência. Estas conclusões caracterizam-se especialmente pela enumeração dos grandes problemas que o MPC enfrenta, do ponto de vista do confronto entre teoria e observações.
Nesta conferência, Primack utiliza a imagem de “navios fantasmagóricos” singrando “negros oceanos” (não se pode deixar de ver nestas imagens o toque de sua esposa Nancy Abrams). O 0,5% de matéria-energia observado é representado na imagem como faróis no alto dos mastros dos navios. A Fig. 1 reproduz a imagem.
Este 0,5% de matéria observada é matéria comum, feita de átomos conhecidos. Existem mais
4% de átomos, previstos pelo MPC, mas que não são observados (identificados na Fig. 1 como
Invisible Atoms). Eles podem ser planetas, estrelas
de pequena massa e outros corpos. Estes 4,5% do conteúdo teórico total representa
a chamada matéria bariônica, porque os bárions (prótons e nêutrons) são os principais
constituintes da matéria comum. Em geral, os cosmólogos e físicos afirmam que estes 4,5% são
conhecidos, mas na verdade, como Primack e outros mostram, há apenas 0,5% da matéria-energia predita
realmente observado.
Em 2008, Primack e Abrams usaram outra imagem para mostrar o balanço de matéria-energia previsto pelo MPC. Eles usaram a analogia da pirâmide. A base da pirâmide representa a energia escura e a ponta da pirâmide a matéria bariônica observada, o 0,5% mencionado acima. A pirâmide é mostrada na Fig. 2. Notem que os números referentes a cada componente de matéria não mudaram de 2008 para 2015; o MPC está realmente parado em seu desenvolvimento teórico-observacional (mas veja COSMOS:25mar15).
Tanto a Fig. 1 como a Fig. 2 destacam um ponto muito interessante relacionado ao conteúdo de
átomos no universo. A maior parte dos átomos observados — 0,5% do total representado nas
figuras — é constituída pelos átomos de hidrogênio (H) e hélio (He). (Lembre-se de que
cada estrela vista no céu é essencialmente uma bola de hidrogênio e hélio). O restante dos
átomos da Tabela Periódica dos Elementos constitui apenas 0,01% do total, como podemos ver
nas figuras. Neste restante estão incluídos as rochas, os metais e tudo o mais, inclusive
os átomos de que nós mesmos somos feitos! A relação 0,01/0,5 é
independente do modelo cosmológico considerado, pois ela trata exclusivamente de observações.
Incidentalmente, o MPC parece aqui contrariar o
Princípio de Copérnico (“O ser humano e a Terra não são especiais.”), pois
se nós somos feitos de tão pequena parcela do conteúdo de matéria e energia do universo,
certamente somos especiais! Voltarei a esta polêmica em outra ocasião (já fiz uma reflexão
sobre tema correlato em arxiv.org/abs/physics/0209094).
A pesquisa de Primack e colaboradores concentra-se na realização de simulações computacionais da evolução do universo, utilizando as prescrições do modelo ΛCDM mais o conhecimento de astrofísica até agora acumulado. As simulações possuem alta resolução espacial, podendo fazer previsões sobre a estrutura de uma única galáxia que surge no universo teórico do MPC. As simulações resultam também em previsões de grande escala espacial, tais como, a existência de uma radiação térmica residual, que no modelo é chamada de Radiação Cósmica de Fundo (RCF), e a forma como as galáxias se distribuem em aglomerados e superaglomerados.
Por exemplo, tomemos a Via Láctea como galáxia fiducial. Uma das simulações descritas por Primack mostra o que seria uma galáxia deste tipo. O resultado está na Fig. 3.
Como pode ser visto na Fig. 3, o halo da Via Láctea possui muitos sub-halos. Tais sub-halos são as
sementes para a formação de galáxias satélites da Via Láctea. A matéria escura não bariônica funciona,
no receituário do MPC, como o esqueleto subjacente a todas as estruturas de matéria bariônica, as quais
são as galáxias propriamente ditas. Isto funciona da seguinte forma, no caso dos halos e sub-halos escuros: os
halos são poços de potencial gravitacional de matéria não bariônica, nos quais a matéria bariônica cai e
é acumulada, resultando, pelo seu próprio colapso gravitacional, na formação de estrelas e galáxias. É
neste sentido, portanto, que dizemos que os halos escuros são as sementes para a formação das galáxias.
Como veremos na próxima seção, o grande número de sub-halos, formados na simulação da Via Láctea, leva a dois grandes problemas para o MPC.
Encerro esta breve relação de imagens do MPC com uma charge “cósmica”. Dois amigos conversam sobre as últimas notícias das estruturas íntimas da matéria. Vejam a Fig. 4.
De certa forma, o bêbado da Fig. 4 está equivocado, pois as partículas que ele enumera
nós as podemos “ver”, i.e., as suas existências já foram comprovadas
experimentalmente. No entanto, ele não deixará de encontrar motivos para beber: existem
inúmeras partículas “escuras” à disposição no mercado, principalmente as
hipotéticas partículas não bariônicas do MPC.
Os sucessos relacionam-se principalmente às descrições quantitativas tanto da RCF e de suas flutuações quanto da distribuição espacial de galáxias. O sucesso aqui não pode ser considerado totalmente satisfatório porque em ambos os casos as observações não são inteiramente completas. A RCF ainda continua sendo objeto de investigação e as amostras de galáxias ainda não são suficientemente completas. Em outras palavras, os sucessos não são tão robustos quanto se desejaria.
Já os fracassos, estes são diretamente relacionados a observações importantes já completamente disponíveis. Neste sentido, os fracassos falam mais alto e colocam o MPC em profundo questionamento. Mencionarei a seguir alguns destes fracassos.
Vária soluções destes problemas têm sido propostas e estão sendo investigadas. O certo é que o MPC enfrenta sérios problemas. É a conclusão mais importante da palestra de Joel Primack.
O artigo referente à palestra está em arxiv.org/abs/1505.02821 e ela também está disponível em vídeo. Quem não quiser assistir a toda a palestra veja pelo menos a discussão no final, a partir de 43:07 minutos (os 5 minutos finais). Há visível tensão nas perguntas e nas respostas de Primack: os problemas remanescentes do MPC, o modelo ΛCDM, são realmente fundamentais.
O curioso é que as últimas palavras do cosmólogo Joel Primack, na palestra em que fala sobre formação de estruturas no universo, são:
“Star formation is the hardest problem in astrophysics.”Quer dizer, o perfeito entendimento dos fenômenos físicos de grande escala do universo depende inextricavelmente do perfeito entendimento dos fenômenos físicos de pequena escala.“Formação estelar é o problema mais difícil em astrofísica.”