14 de outubro de 2020
Uma das questões mais intrigantes da Astronomia moderna é a que se refere à presença de matéria escura no Universo.
Quando dizemos matéria “escura” não estamos nos referindo apenas à matéria que não podemos ver
com os nossos olhos. As observações astronômicas atuais são feitas não somente na região ótica do espectro
eletromagnético, região transmitida pela atmosfera e detectada pelo olho humano, mas também nas faixas de
raios X (estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias), raios gama (supernovas), radiação infravermelha (núcleos galácticos,
nuvens moleculares) e ultravioleta (estrelas), e ondas de rádio (estrelas pulsantes e gás galáctico).
Podemos então medir a radiação emitida por uma galáxia em todos estes
comprimentos de onda e através desta radiação calcular a massa da galáxia,
baseando-se no conhecimento do comportamento físico da radiação dos elementos constituintes de uma galáxia (estrelas,
gás, poeira).
Podemos também determinar a massa de uma galáxia a partir do movimento de suas estrelas constituintes utilizando-se as leis de movimento e de gravitação de Newton. Ao compararmos os dois resultados obtidos para a massa galáctica (a massa “luminosa” e a massa “dinâmica”) verificamos que a massa luminosa (diretamente observada) é sistematicamente menor que a massa dinâmica (calculada). A conclusão que se tira é a de que deve haver na galáxia matéria não-radiante, portanto, escura.
Um outro aspecto importante é que a distribuição de matéria obtida a partir do movimento de estrelas em galáxias difere substancialmente da distribuição de luminosidade nas galáxias. Se a luminosidade de uma galáxia fosse um indicador provável da distribuição de massa, a massa de uma galáxia deveria ser concentrada perto de seu centro, o que acarretaria que longe da região nuclear da galáxia as velocidades orbitais das estrelas deveriam decrescer inversamente com a raiz quadrada da distância ao centro, como consequência da lei dos períodos de Kepler, da mesma forma que é observado para as velocidades orbitais dos planetas no sistema solar. Por outro lado, observações tanto em comprimentos de onda na faixa ótica como na faixa de rádio, indicam que as velocidades orbitais em galáxias permanecem essencialmente constantes e com valores elevados à medida que se aumenta a distância da região nuclear.
A interpretação mais imediata deste resultado é a de que uma fração significante da massa de uma galáxia se distribui de forma diferente da massa radiante e se estende bem além dos limites visíveis da galáxia, constituindo uma componente de matéria escura na forma de um halo. A força gravitacional devida a esta matéria invisível seria então responsável pelas altas velocidades orbitais observadas.
A figura mostra as curvas de rotação de corpos de prova em torno de uma massa concentrada — como os planetas em torno do Sol. Ela está representada pela linha tracejada, que é o chamado comportamento kepleriano [V(R) ∝ R-1/2]. A linha cheia representa a curva de rotação de corpos de prova — de estrelas ou nuvens de gás — em um modelo de galáxia de disco. O comportamento esperado no caso da galáxia é que a rotação caia de forma kepleriana pra distâncias maiores do que o raio da galáxia RG. Mas não é o que acontece. As observações seguem o padrão definido pela linha vermelha, ou seja, a queda V(R) ∝ R-1/2 não ocorre. Por causa deste comportamento estas curvas de rotação são chamadas “curvas de rotação planas”.
Mas não foi a partir da observação do movimento interno de galáxias individuais que se chegou originalmente à hipótese da existência de matéria escura no Universo. A primeira evidencia da existência de matéria escura foi obtida na década de 1930 pelo astrônomo suíço F. Zwicky. Ele verificou que as galáxias do aglomerado de galáxias de Coma estavam movendo-se tão rápido que a atração gravitacional mútua das galáxias, calculada a partir de sua massa luminosa, era insuficiente para mantê-las no aglomerado. Admitindo-se que o aglomerado já atingira o equilíbrio dinâmico, Zwicky concluiu então que deveria haver matéria escura em quantidade suficiente para manter as galáxias ligadas gravitacionalmente umas às outras.
Inicialmente os astrônomos pensaram que o problema de matéria não radiante fosse uma característica exótica de aglomerados de galáxias, sem relação alguma com galáxias isoladas. A importância do trabalho observacional nas galáxias é que ele demonstra que a presença de matéria escura é também uma propriedade de galáxias individuais.
Existem vários candidatos para a constituição da matéria escura no Universo. A matéria ordinária é bariônica, isto é, formada por prótons e nêutrons. Se a matéria escura for bariônica , ela deverá estar na forma de objetos de massa muito menor do que a massa do Sol (estrelas anãs, planetas, etc.), de tal forma que a sua radiação não pode ser detectada por ser fraca demais. Alguns cosmólogos estão convencidos de que a matéria escura não pode ser bariônica. Isto porque a densidade de matéria bariônica presente no Universo atual pode ser predita pelas teorias de formação do Universo, e evidencias observacionais indicam que a densidade bariônica teórica atual é consistente com a matéria luminosa existente.
Outra possibilidade refere-se a formas não-bariônicas de matéria. Várias partículas elementares têm sido sugeridas: neutrinos, gravitinos, fotinos, áxions, buracos-negros, e mesmo monopolos magnéticos. Neutrinos representam atualmente um dos mais fortes candidatos à matéria escura, apesar de não ser fato estabelecido experimentalmente se eles possuem massa. Em suma, este é um dos grandes problemas da hipótese de matéria escura, ou seja, não há qualquer evidência observacional direta de sua existência.
A partir da década de 1970, a abundância das observações dos movimentos orbitais sistemáticos em galáxias espirais, ou seja, da rotação destes objetos, motivou o surgimento de uma explicação alternativa para o aparente paradoxo existente entre o esperado comportamento kepleriano da rotação galáctica e os resultados observacionais que indicavam velocidades mais elevadas. A hipótese alternativa é a de que a dinâmica (ou, a gravitação) newtoniana não seria mais válida em escalas de distancias galácticas, onde investiga-se pela primeira vez campos gravitacionais bastante fracos, nas regiões exteriores das galáxias. Da mesma forma que no limite de campos muito fortes, como no caso do movimento de Mercúrio, em que houve necessidade de uma modificação da teoria de gravitação newtoniana para uma explicação satisfatória das anomalias observadas, sugere-se que no limite de campos muito fracos a gravitação newtoniana também deva ser modificada. Em outras palavras, o problema de matéria escura não existiria, o que existe é uma inadequação das leis físicas à nova situação, ou seja, à situação em que os campos gravitacionais são muito fracos. Existem atualmente várias propostas de modificações da gravitação newtoniana para os limites de campos fracos, sendo que a que se tem mostrado mais eficiente e resistente aos testes experimentais é a teoria proposta pelo astrônomo e físico israelense M. Milgrom. Ele sugere a existência de uma aceleração gravitacional crítica no Universo, abaixo da qual a dinâmica newtoniana (a 2a lei, efetivamente) deve ser modificada.
Quando se pensa nesta controvérsia entre matéria escura e uma nova
física (implicada pela modificação das leis de Newton) é instrutivo recordar
o que ocorreu no caso do sistema solar. A descoberta do planeta Netuno no
século passado representou um grande sucesso da hipótese de matéria escura
em termos da gravitação newtoniana. Medidas astronômicas muito precisas
revelaram irregularidades no movimento de Urano. Isto levou Adams na
Inglaterra e Le Verrier na França a independentemente prever a existência
de um planeta exterior perturbando o movimento de Urano — matéria escura, pois ainda não era
observado. Eles não apenas sugeriram a sua
existência como também calcularam precisamente a
sua órbita, e posteriormente Netuno foi descoberto. Por outro lado, o caso
de Mercúrio foi bem diferente. Le Verrier achou que a precessão anômala
da órbita de Mercúrio pudesse ser explicada por pequenos planetas situados
entre Mercúrio e o Sol, novamente matéria escura, mas nenhum deles foi
encontrado. Hoje sabemos que no limite de campos gravitacionais muito
fortes, como é verificado na órbita de Mercúrio, novos efeitos aparecem, os
quais precisam ser descritos por uma teoria de gravitação mais completa,
no caso pela Teoria da Relatividade Geral de A. Einstein. Não é de se surpreender que
no limite de campos muito fracos, explorado agora pela primeira vez por
observações astronômicas precisas, nos encontremos novamente com efeitos
físicos que só possam ser corretamente descritos por uma nova teoria de
gravitação.
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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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