Neutrinos superluminais e bósons de Higgs



Domingos Soares

18 de janeiro de 2012


Resumo

O final de 2011 foi marcado por dois resultados experimentais extraordinários. O projeto europeu OPERA detectou neutrinos superluminais, contrariando um dos postulados da Teoria da Relatividade Restrita, e o acelerador LHC do CERN falhou em detectar os bósons de Higgs, contrariando uma expectativa importante do Modelo Padrão das Partículas Elementares. Na base destes resultados estão tratamentos de dados complexos. Mostrarei aqui alguns aspectos relacionados à significação estatística de resultados experimentais, mais precisamente daqueles que podem ser representados por uma distribuição Normal, também chamada Gaussiana.

 


1. Introdução

Um artigo do cientista indiano B.G. Sidharth, intitulado “What if Superluminal Neutrinos Exist but not Higgs Bosons?”, apresenta uma visão interessante de dois eventos experimentais importantes que ocorreram no final de 2011.

O primeiro evento foi a detecção de neutrinos superluminais (ou seja, com velocidades maiores do que a velocidade da luz no vácuo) pelo projeto OPERA.

O projeto OPERA (Oscillation Project with Emulsion Tracking Apparatus) foi desenvolvido pelos europeus, num laboratório subterrâneo, com o objetivo de se detectar os neutrinos tau gerados pela oscilação — i.e., pela transmutação — de neutrinos múon (mais detalhes na página do OPERA).

O evento mencionado acima foi um subproduto surpreendente pois viola a Teoria da Relatividade Restrita e implicaria, segundo o autor, numa correção desta teoria ou na sua transformação em um caso especial de uma teoria de espaço-tempo plano mais ampla — mas não no seu abandono completo. A detecção ocorreu com o nível de certeza de “seis sigmas”, o que experimentalmente significa certeza (“The experiment has been measured to 6σ level of confidence, which makes it a certainty”; ver pág. 2 do artigo citado).

O segundo evento foi o decepcionante anúncio da não-detecção do bóson de Higgs nos experimentos do LHC. Nenhum dos picos vistos pelos experimentos está muito acima dos “dois sigmas” de nível de certeza. O nível “cinco sigmas” — pelo menos — é necessário para reivindicar uma descoberta, ou seja, para que haja menos de uma chance em um milhão, dos dados atuais serem um acaso estatístico ou ruído experimental (mais precisamente, 0,57 chance por milhão, conforme a coluna do meio na Tabela I abaixo — que apresentarei na próxima seção —, para m=5). No evento do neutrino superluminal, os experimentadores apresentaram uma significância estatística de 6σ, ou seja, de acordo com a mesma Tabela I, há 2 chances em um bilhão de que a medida seja o resultado de uma flutuação estatística na coleta dos dados. Isto é muito pouco! O sinal deve representar um evento real, de fato.

Aproveito o artigo de Sidharth para uma discussão do que é a abordagem científica da significância estatística de uma medida experimental. Tratarei da distribuição normal de dados experimentais. Isto é feito na seção 2. Na seção 3 discuto um caso de detecção de sinal de um fenômeno já conhecido, oposto ao caso de uma descoberta científica, que caracteriza os experimentos discutidos por Sidharth. Termino com breves considerações na seção 4.

2. Significância estatística na distribuição normal

A análise de dados experimentais aleatórios pode ser feita através da distribuição de probabilidades representada pela curva normal ou gaussiana.

As probabilidades associadas à existência de eventos não aleatórios ou reais são atribuídas a partir das probabilidades dos eventos aleatórios. Quer dizer, se a probabilidade de uma medida ser uma flutuação aleatória do valor médio for muito pequena — de acordo com a distribuição normal associada —, então a probabilidade complementar é muito grande, isto é, a probabilidade da medida em consideração ser um evento real.

A apresentação da significância estatística de uma medida é a abordagem científica da caracterização do valor de uma medida, ou de uma descoberta, experimental. No entanto, no caso de uma descoberta científica, além da significância estatística, o processo deve ser confirmado por pesquisadores independentes devido à alta complexidade das montagens experimentais. Só depois de várias confirmações é que uma descoberta é aclamada como estabelecida.

Outra questão importante: um nível de certeza de 2σ pode ser suficiente para determinado procedimento experimental — pois há no máximo 4 chances em 100 de um evento ser uma flutuação —, mas não ser suficiente no caso de uma investigação experimental de um fenômeno desconhecido. Por exemplo, 2σ pode ser suficiente para a caracterização de uma linha de emissão num espectro estelar, mas totalmente insuficiente para a confirmação da detecção do bóson de Higgs.

Para a quantificação deste nível de significância nos valeremos, portanto, da distribuição normal. A curva é dada pela equação:

com –∞ < x < ∞ e σ > 0. μ representa o valor médio das medidas e σ o seu desvio padrão. Na Figura 1, μ foi considerado, por conveniência, igual a zero.

 

Figura 1 — A distribuição normal. De acordo com a Tabela I, a área sob a curva entre as linhas azuis (1σ) contém 68,3% da amostragem, entre as linhas verdes (2σ), 95,5%, e entre as linhas vermelhas (3σ), 99,7%.

 

A área sob a curva normal é dada pela chamada função erro, erf(x).

 

A Tabela I é uma representação probabilística da curva da distribuição normal mostrada na Figura 1.

 

 


Tabela I - As caudas da distribuição Normal
Porcentagem da área sob a curva Normal nas regiões especificadas:
m x > mσ x < –mσ, x > mσ mσ < x < mσ
(uma cauda) (duas caudas) (entre caudas)

0 50,0 100,00 0,0
0,05 30,85 61,71 38,29
1,0 15,87 31,73 68,27
1,5 6,681 13,36 86,64
2,0 2,275 4,550 95,45
2,5 0,621 1,24 98,76
3,0 0,135 0,270 99,73
3,5 0,0233 0,0465 99,954
4,0 0,00317 0,00633 99,9937
4,5 0,000340 0,000680 99,99932
5,0 0,0000287 0,0000573 99,999943
6,0 0,0000000987 0,000000197 99,99999980


 

Os valores listados na Tabela I podem ser calculados utilizando-se a função erro. A função erro não possui uma expressão analítica fechada mas sim expansões em séries de Taylor. Existem vários algorítmos apropriados para o cálculo da função erro à disposição. Os valores da Tabela I podem ser conferidos com um algorítmo que fornece respostas até seis dígitos (veja aqui), ou com um algorítmo que fornece mais de seis dígitos (veja aqui). Foi com este último que calculei os valores correspondentes a 6σ na Tabela I.

3. Exemplo de detecção de sinal num espectro de radiofrequência

Uma discussão interessante sobre o nível de significância estatística de detecção de um sinal está apresentada no texto “DETECTION OF SIGNAL” em ned.ipac.caltech.edu/level5/Wall/Wall4.html. Discute-se um espectro de radiofrequência, emitido por um par de galáxias. O nível de 2σ é considerado satisfatório para a aceitação da detecção.

A significância de 2σ, de acordo com a Tabela I — que, a propósito, foi adaptada do texto em questão —, significa que há apenas 2,3 chances em 100 de a linha detectada ser o resultado do acaso. A probabilidade neste caso é de uma cauda, pois sabe-se que a linha em questão é de emissão. Expliquemos melhor.

Se uma determinada linha espectral investigada é sabida ser de emissão tem-se a certeza de que ela aparecerá com valores maiores do que o valor médio das medidas. Então, a probabilidade do evento ser aleatório será dada pela integral da cauda positiva da distribuição normal. A Tabela I e a Figura 1 ilustram bem esta situação. A probabilidade de duas caudas é o dobro, devido à simetria da curva normal.

4. Considerações finais

Como se tratam de possíveis descobertas científicas, independentemente de sua significância estatística, ambos os resultados descritos na Introdução necessitam confirmação. No evento do neutrino, a complexidade da experiência requer uma confirmação por outros pesquisadores. No caso do bóson de Higgs, a confirmação da não-detecção dependerá do acúmulo de uma maior base de dados, que é esperada para o fim de 2012.

Interessantemente, o objetivo de B.G. Sidharth, ao discutir estes dois resultados experimentais, é apresentar uma solução para os dois eventos, que ele supõe bastante plausíveis. Se estes resultados são supostos reais, i.e., uma partícula pode ter velocidade superluminal e o bóson de Higgs na realidade não existe, Sidharth propõe uma teoria em que o espaço-tempo não é “liso”, mas granulado como é esperado em teorias de gravitação quântica.



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Domingos Sávio de Lima Soares