A gravidade e o tempo: “No meio da cerca tinha um galho...


Domingos Soares

10 de junho de 2012



‘E para nós é o bastante que a gravidade realmente existe
e atua de acordo com as leis as quais temos explicado (...)’


Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, Livro III — I. Newton, 1687




Resumo

O desenvolvimento peculiar de um galho de árvore é tentativamente explicado invocando-se a atuação progressiva da gravitação universal. Um desfecho surpreendente, no entanto, ilustra os caminhos nem sempre seguros da formulação de hipóteses científicas.



1. Introdução

O campus da Universidade Federal de Minas Gerais, na Pampulha, é circundado por uma cerca de tela metálica, que corre ao lado das árvores que abundam no local.

Em uma manhã de final de ano, eu caminhava subindo uma avenida ao lado da cerca Norte do campus. O sol batia às minhas costas. De repente, chamou-me a atenção um pequeno galho escuro, aparentemente seco, preso nas malhas da tela metálica.

Como este, os galhos caem das árvores e se engastalham
nas malhas da tela metálica (Foto: D. Soares).

Nada de extraordinário havia no galho ou na tela; apenas um galho seco preso numa cerca. Mas os galhos que comecei a encontrar, enquanto caminhava, começaram a chamar-me a atenção e a despertar a minha curiosidade. Como pode ser visto nas fotos seguintes, vários galhos são atravessados pelos arames da cerca. Como um galho seco foi atravessado pela trama metálica da tela? Ou, em outros termos, que tipo de interação ocorreu entre um galho aparentemente morto e a trama metálica de uma cerca?

Os detalhes assinalados mostram como os galhos estão entrelaçados na trama
da tela metálica. Como pode ser isto? (Fotos: D. Soares).

Naquele momento a minha reaçào foi apenas a de registrar o fenômeno e fiz várias fotos dos galhos entrelaçados com a cerca metálica. Para mim, um astrônomo e físico de formação, o fenômeno que observava era totalmente novo e sobretudo instigante.

Seis meses depois, ao passar pelo mesmo local, observando novamente os galhos na cerca, de repente, não mais que de repente, resolvi o problema. Pelo menos, descobri a minha solução, que me satisfez, embora possa ser incompleta ou mesmo incorreta. A experimentação científica seria a única maneira de se testar a hipótese que criei. Descreverei a ideia geral por trás desta hipótese, na próxima seção. Na terceira seção, apresentarei um exemplo semelhante ao caso dos galhos — porém de natureza totalmente diversa —, mas que será útil para o entendimento de minha proposição, a qual será, então, apresentada. A seguir, na última seção, o caso sofre um reviravolta e a verdadeira origem dos galhos na cerca é surpreendentemente revelada. A gravidade continua obviamente ubíqua e sempiterna, pairando acima de todas as vãs fiosofias…

2. Gravidade e tempo

A ideia geral por trás da hipótese que pretende explicar a estranha interação entre o galho e a trama da cerca é a gravitação universal: a força da gravidade é universal pois ela está sempre presente no universo. Dois corpos sempre se atraem pela força gravitacional.

A força da gravidade é uma força muito fraca, quando comparada às outras forças existentes na natureza, quais sejam, a força eletromagnética e as forças nucleares. Por exemplo, a força elétrica entre dois elétrons é um sextilhão de sextilhões — o número 1 seguido de 42 zeros — de vezes maior do que a força gravitacional existente entre eles, qualquer que seja a sua separação.

Agora, o segundo ingrediente da hipótese: o tempo. A força da gravidade — o peso do galho, neste contexto — é pequena mas ela produz efeitos estranhos e surpreendentes pois ela atua ao longo do tempo, o qual pode representar um enorme período. Ou seja, uma força fraca atuando durante um intervalo de tempo longo causa efeitos inesperados! Vamos a alguns exemplos, antes de concluirmos a explicação do caso do galho, que será feita na próxima seção.

As estrelas são formadas a partir do colapso gravitacional de uma nuvem imensa de gas e poeira cósmicas. Este colapso é causado pela força de atração gravitacional existente entre as várias porções da nuvem. A foto seguinte mostra a Nebulosa de Órion, uma nuvem luminosa onde estrelas foram e estão sendo formadas.

A Nebulosa de Órion, localizada na constelação de Órion, é o berço
de novas estrelas, formadas pela ação contínua da força da gravidade ao
longo de milhões de anos (Foto: Telescópio Espacial Hubble/NASA).

O brilho da nuvem é causado pela luz das estrelas recém-formadas, e outras estão sendo formadas pela atuação lenta e incessante da atração gravitacional que faz com que a nuvem fragmente-se em centenas de pedaços, cada um deles dando origem a uma nova estrela. As estrelas formaram-se há milhões de anos e continuam sendo formadas na Nebulosa de Órion! A força da gravidade atuando ao longo do tempo também foi a responsável pela formação de nosso Sol, o centro de nosso sistema planetário.

O segundo exemplo em que vemos a gravidade atuando durante um longo período de tempo e gerando uma estrutura estranha e bela é um conjunto de galáxias, não muito distante de nossa Via Láctea, em termos astronômicos. São três galáxias, mas apenas duas delas estão ligadas fortemente pela gravidade. O conjunto foi batizado pelos astrônomos que a estudaram de “Cadeira de Dentista”, em virtude de sua forma característica.

A galáxia interagente da Cadeira de Dentista é, na verdade, um conjunto de duas
galáxias em interação. A forma peculiar, entortada, da galáxia A foi criada pela
interação gravitacional com a galáxia B. A gravidade atuou por centenas de milhões
de anos para deformar a galáxia A e lhe dar a forma de uma “Cadeira de Dentista”,
junto com a sua companheira, a galáxia B (Foto: P.M. Weilbacher, P.-A Duc,
U. Fritze-v. Alvensleben, P. Martin, e K.J. Fricke/New Technology Telescope).

O conjunto é formado por três galáxias, identificadas pelas letras A, B e C, na foto acima. A e B formam um par físico, ou seja, estão em órbita uma da outra, presas pela força gravitacional mútua. Elas estão a mais ou menos 500 milhões de anos-luz de nós. A galáxia C está mais atrás, mais longe, a cerca de 640 milhões de anos-luz de nós. Então, C está 140 milhões de anos-luz atrás de A e B. A distância entre A e B é de aproximadamente 85 mil anos-luz. Para termos uma ideia das distâncias envolvidas, o nosso Sol está na parte externa da Via Láctea a mais ou menos 30 mil anos-luz do seu centro. Vemos, portanto, na Cadeira de Dentista, a gravidade lentamente atuando por centenas de milhões de anos, e pela ação mútua entre as galáxias A e B criando uma forma espetacular nos céus!

Vamos sair do céu e ir para a Terra, mais especificamente, para a Itália, para ver o nosso último exemplo. Nele a gravidade atuou durante dezenas e dezenas de anos e produziu um efeito cumulativo que resultou maravilhoso. Trata-se da famosa torre inclinada de Pisa.

A Torre de Pisa, um campanário na cidade de
Pisa, Itália. De certa forma, a gravidade e o
tempo se uniram para inclinar a torre (Foto:
Nathalia CG).

A sua construção foi iniciada em 1173 e já no início começou a se inclinar devido ao solo mal compactado. Por dezenas de anos a ação da gravidade — o peso da torre — provocou a inclinação do edifício. Atualmente a instabilidade está bastante reduzida e os engenheiros responsáveis pela torre garantem que ela não está se inclinando mais.

Com estes três exemplos encerramos a ilustração de como a gravidade atuando durante muito tempo leva a efeitos extraordinários. A gravidade também causou o efeito nos galhos na cerca. É a hipótese que detalho na próxima seção e que é capaz de explicar a estranha interação entre os galhos e a cerca no campus da UFMG.

3. O galho na cerca

As fotos dos galhos emaranhados com a trama da cerca do campus da UFMG são intrigantes. Como pode ser que um galho seco caído numa tela metálica acabe por se entranhar entre os fios da trama? A resposta repousa em três aspectos: a ação da gravidade, i.e., do peso do galho, um intervalo de tempo grande, e a presença de vida no galho, aparentemente seco e morto. Antes de continuar apresentarei um caso totalmente diverso do presente mas que tem com ele certos pontos de contato. Trata-se do fenômeno da regelação do gelo.

A ilustração a seguir mostra, esquematicamente, um bloco de gelo sobre quatro escoras. Um fio de arame envolve o bloco e é puxado para baixo por um peso nele amarrado. O fio de cobre exercerá uma pressão muito alta sobre o gelo, pois a área de contato do fio é muito pequena — lembrem-se, pressão é igual a força (o peso P) dividida pela área de contato. Devido ao aumento de pressão, o ponto de fusão da água diminui ficando a vizinhança do fio mais “quente”. O gelo derrete no local e o fio, forçado pelo peso, corta a barra de gelo. Após a passagem do fio, a pressão volta ao normal e a vizinhança agora é mais “fria”, solidificando a água. Esta é a regelação de que falamos acima. Vagarosamente, o fio de cobre vai cortando o bloco até que, eventualmente, sai na parte inferior deixando o bloco incólume sobre as escoras. Na figura, vemos o fio numa posição intermediária, preso dentro do bloco de gelo.

Regelação: a pressão do fio de cobre sobre o gelo diminui o
seu ponto de fusão, e o gelo derrete. O fio então corta o gelo,
por causa do peso P. Após a passagem do fio, a pressão
volta ao normal e ocorre a solidificação da água.

Incidentalmente, este é um comportamento anômalo pois a maioria das substâncias tem o ponto de fusão aumentado quando submetido a sobrepressões. Mas a água não é única pois o bismuto e o antimônio também apresentam este tipo de comportamento.

Ora, mas o que tem isso a ver com o nosso galho preso na tela de arame? Faremos uma analogia deste caso com o nosso.

O bloco de gelo é o galho, o fio de cobre é a trama de arame da cerca e o peso P é o próprio peso do galho. A única diferença é que ao invés do arame se mover através do galho, o galho é que se moverá, vagarosa e paulatinamente, através da trama metálica. O galho pressionará o arame — a pressão será alta também pois a área de contato do arame é pequena — e isto cortará o galho. Após o corte é que temos a surpresa: o galho não está morto! A umidade ambiente, a chuva às vezes, contribuirão para que o galho “rebrote” — o análogo à regelação —, uma verdadeira cicatrização, a reconstituição do tecido lacerado, que cobrirá o corte feito pelo arame sob a pressão do peso do galho até a total inclusão do arame no interior do galho!

A gravidade, o tempo... Não será verdadeiramente este o processo?

4. Não, acho que não

Esta foi a reação de minha esposa Lu após ler a minha explicação e examinar com bastante atenção as fotografias acima. “— Preciso ver estes galhos ao vivo. Vamos lá?

No dia 07 de junho, aproveitamos o feriado e fomos examinar os galhos na cerca. A primeira coisa observada por ela foi que a mata estava relativamente afastada da cerca, para permitir que os galhos das árvores caíssem na tela. A cerca é separada da mata por uma estrada — para manutenção e segurança do campus — da largura de um automóvel. A segunda coisa que observou, após examinar cuidadosamente cada galho que encontramos, foi que a maioria dos galhos parecia ter sido cortada, ou serrada. Lu chegou, então, a sugerir que os galhos pareciam ter sido propositadamente colocados na cerca. Esta sugestão me pareceu absurda porque os galhos estavam distribuídos pela cerca sem qualquer regularidade ou aparente intenção. Além disso, neste caso, os galhos não penetrariam a trama metálica da cerca como observado. Ela também concordou que esta era uma hipótese um tanto inverossímel, mas acrescentou que, agora, definitivamente não aceitava a minha explicação, tendo em vista os dois pontos levantados na observação do local.

Mais um galho e os detalhes do entrelaçamento com a trama da tela metálica.
Note a presença da estrada de manutenção (Foto: D. Soares).

Assim ficamos, e nos dedicamos a outras atividades, sem mais tocar no assunto dos galhos na cerca. Eu, também, passei a descrer de minha explicação, apesar da bela associação com a gravidade e o seu poder universal.

Ao final da tarde, já em casa, tomava o meu banho — como o sábio Arquimedes e muitos outros na história das grandes descobertas —, quando de repente, não mais que de repente, resolvi o problema. Pelo menos, descobri a minha solução, que me satisfez, embora, novamente, possa ser incompleta ou mesmo incorreta. Vamos a ela.

Como eu bem me recordava, a estrada de manutenção mencionada acima originalmente não existia — lembrem-se que frequento o campus da UFMG desde 1971, quando lá cheguei como estudante. A mata chegava até bem perto da cerca. Os ramos de algumas das árvores próximas se entrelaçaram na trama da cerca e lá foram se desenvolvendo e crescendo em tamanho. Alguns galhos cresceram tanto que alcançaram os arames da tela e foram por eles rasgados, como mostram as fotografias.

Veio a construção da estrada. Os trabalhadores removeram a parte da mata adjacente à cerca e para que não houvesse danos à cerca e à tela metálica cortaram, ou serraram os galhos que estavam entremeados na tela, deixando nela os pedaços que sobraram. Estes foram os que, muitos e muitos anos depois, eu registrei nas fotografias.

A Lu concordou com a explicação, acrescentou algo sobre cercas vivas, mas acho que isto não vem ao caso…

Não vou tirar a história da gravidade e do tempo. Ela está muito boa.

Mais alguma coisa?



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