Quilonova e erupções de raios gama


Domingos Soares

19 de novembro de 2018


Resumo

Um dos cenários possíveis para a produção de erupções de raios de gama de curta duração é o fenômeno da quilonova, resultado da fusão de estrelas de nêutrons. O evento GW170817, reivindicado pelos observatórios LIGO e Virgo, como ondas gravitacionais geradas pela fusão de um sistema binário de estrelas de nêutrons, reforçou enormemente este cenário e foi saudado pelos seus defensores como um dos maiores acontecimentos científicos dos últimos tempos. Discuto alguns detalhes desta questão e dos desdobramentos futuros em favor ou contra a prevalência da realidade da quilonova como cenário definitivo para a produção das erupções de raios gama de curta duração.



1. Introdução

A observação do evento GW170817 pelo observatório Laser Interferometer Gravitational Wave Observatory (LIGO) e pelo observatório europeu Virgo foi destacada entusiasmadamente por um setor da comunidade científica. Eles identificaram o evento como o resultado da fusão de um sistema binário de estrelas de nêutrons (SBEN). Esta identificação imediata e entusiasta carrega um viés fundamental, pois ela favorece um dos cenários disponíveis na literatura científica para a produção de um tipo particular de “Erupção de Raios Gama” (ERG, em inglês GRB, de Gamma-ray Burst), qual seja, o de curta duração (ERG-C), cujas erupções duram menos do que 2 segundos. Estes constituem a minoria dos eventos de ERG. Cerca de 70% são de longa duração (> 2 s), sendo que são observados também, nesta categoria, alguns eventos de duração ultralonga, com duração maior do que 10.000 segundos (> 2 horas).

A fusão de estrelas de nêutrons. além de produzir ondas gravitacionais (OGs), resulta num fenômeno excepcionalmente energético de curta duração, que irradia em todos os comprimentos de onda, desde ondas de rádio a raios gama, sendo, nesta última faixa, um ERG-C. A galáxia hospedeira do evento foi identificada como NGC 4993, uma galáxia lenticular situada a 130 milhões de anos-luz da Terra. A figura 1 mostra a galáxia observada pelo Telescópio Espacial Hubble. Se confirmado, temos aí a primeira observação de uma “quilonova”.



Figura 1

Galáxia lenticular NGC 4993. Em 17 de agosto de 2017 o observatório LIGO e o interferômetro Virgo detectaram OGs originadas nesta galáxia. Uma erupção de luz em vários comprimentos de onda foi também observada na galáxia, cujo local é mostrado pelo pequeno quadrado à esquerda e acima do centro galáctico. O seu brilho diminuiu em cerca de 10 dias e está mostrado no quadrado no canto superior direito (Telescópio Espacial Hubble).


Na seção 2 apresentarei mais detalhes sobre as ERGs e os dois principais cenários para as ERG-Cs. Na seção 3 falarei mais um pouco sobre a suposta quilonova produzida no evento GW170817. Apresento alguns comentários adicionais na seção 4 e mais algumas referências na seção 5.

2. Erupção de Raios Gama

As ERGs são lampejos extremamente energéticas, irradiados na faixa de raios gama, e que podem ter durações de dezenas de milissegundos até várias horas. Eles têm sido observados em galáxias distantes, mas podem, obviamente, ocorrer na Via Láctea também. São considerados os eventos eletromagnéticos mais brilhantes que ocorrem no universo (mais detalhes em Erupção de Raios Gama).

As ERGs que nos interessam aqui são as de curta duração, as ERG-Cs, convencionalmente colocadas na faixa de até 2 segundos de duração. A divisão das ERGs em termos da duração dos lampejos não é arbitrária, mas ocorre porque, dependendo da duração, o mecanismo físico a ser invocado para sua explicação é diferente. Pode ocorrer, inclusive, que existam mecanismos teóricos que competem, devido a não haver ainda suficiente clareza experimental e observacional para discriminar entre eles. Por exemplo, para o caso da ERG-C, que é o objeto de atenção aqui, existem pelo menos dois mecanismos teóricos propostos na literatura. Um deles é o da quilonova, que discutiremos na seção seguinte, e o outro, que com este compete, coloca a origem da ERG-C como devido a instabilidades e consequente dissipação de energia magnética na crosta de estrelas de nêutrons de altíssimo campo magnético, as chamadas “magnetares” (cf. An exceptionally bright flare from SGR1806-20 and the origins of short-duration gamma-ray bursts, de autoria do astrofísico K. Hurley e mais 19 coautores).

Vejamos agora o cenário da quilonova para a origem da ERG-C e porque ele depende crucialmente da confirmação do evento GW170817, através da observação de eventos semelhantes no futuro.

3. Quilonova e GW170817

A quilonova é o processo altamente energético resultante da fusão de um sistema binário de estrelas de nêutrons, o SBEN mencionado na Introdução. Trata-se de um fenômeno previsto teoricamente, mas só agora reivindicado pelos seus defensores como tendo sido comprovado no evento de OGs identificado por GW170817 (ver COSMOS:16out17 para mais detalhes sobre a putativa primeira detecção de uma quilonova). Se confirmada, esta detecção estabelece um novo conceito em astrofísica, qual seja, a da fonte multimensageira, que é observada em vários domínios de observação astronômica, eletromagnético e gravitacional (ver COSMOS:21dez17 para mais detalhes sobre a sequência temporal das observações referentes à suposta quilonova multimensageira). Este é o ponto de vista fortemente defendido pelo grupo de pesquisadores que propõem este novo conceito, cujo trabalho aparece detalhado em KILONOVA, The Cosmic Multi-Messenger). Enumero a seguir os principais pontos saudados pelos defensores da conexão GW170817 – quilonova.

4. Comentários finais

A ERG-C possui pelo menos dois cenários físicos para a sua produção, a saber, a quilonova e a magnetar, como mencionado na seção 2. A confirmação de OGs produzidas por SBENs fortalecerá enormemente o cenário da quilonova, cuja existência é intimamente ligada à fusão de um SBEN. É exatamente por isto que o grupo de cientistas defensores do modelo da quilonova para os ERG-Cs são tão entusiastas quanto ao evento GW170817 e à sua interpretação teórica como sendo devido ao destino final de um SBEN.

É importante salientar que a dúvida na conexão GW170817 – quilonova resulta fundamentalmente da incerteza que existe na localização da fonte de OGs (ver figura 4 de OGs, conseguimos detectá-las?). A incerteza na localização de uma fonte astronômica é dada pela chamada “elipse de erro” no plano do céu. No caso de GW170817, a elipse de erro vale 28 graus quadrados (≈ 140 vezes a área aparente da Lua Cheia; cf. GW170817-1). Quer dizer, a fonte pode estar em qualquer ponto no interior da elipse de erro. Neste caso ela é bem menor do que as das observações de OGs anteriores do LIGO pois aqui a detecção de GW170817 foi também reivindicada pelo observatório europeu Virgo. Isto diminuiu consideravelmente a elipse de erro, como pode ser visto nas ilustrações em GW170817-2. No entanto, ela continua grande e a conexão da fonte de OGs (GW170817) com a ERG não pode ser feita de imediato e, portanto, a conexão de GW170817 com a quilonova também não pode ser feita com grande certeza. A inferência feita pelos pesquisadores do LIGO e Virgo e do grupo da quilonova em favor da conexão GW170817 – quilonova é baseada em considerações teóricas em vista das observações disponíveis. Obviamente, a elipse de erro diminuirá quando mais um observatório passar a operar, o que é esperado para os próximos anos, como mencionado abaixo. Poderemos, então, ter mais confiança na conexão se novos eventos forem detectados.

Os dois observatórios LIGO e o observatório de OGs europeu Virgo voltarão a operar em fevereiro de 2019, após os ajustes e atualizações realizados em 2018, e permanecerão operantes por 1 ano, antes da próxima atualização. Esta operação conjunta é denominada Run 3, i.e., Operação 3. A Operação 4 está prevista para 2021 e contará com mais um observatório, o japonês KAGRA. Nos próximos anos, portanto, teremos a confirmação ou não do fenômeno da quilonova.

5. Referências adicionais

O evento GW170817 – quilonova está representado pela NASA em NASA Missions Catch First Light from a Gravitational-Wave Event

Para mais informações gerais sobre a magnetar, a estrela de nêutron altamente magnetizada, ver este texto da Wikipédia.



Leia outros artigos em www.fisica.ufmg.br/~dsoares/notices.htm.