O turbilhão de Oort

Domingos Soares

13 de dezembro de 2017


Resumo

Apresento a tradução do conto de ficção científica “The Oort crowd” do britânico Ken MacLeod (63), publicado na revista Nature, vol. 406, de 13 de julho de 2000. O conto, de inspiração astronômica, exibe noções contemporâneas de astrobiologia, ecologia e de preservação da vida.



1. Introdução

A nuvem de Oort é uma coroa esférica, centrada no Sol, situada nos limites do sistema solar. Esta coroa é constituída por planetesimais, pequenos corpos sólidos, que sobraram da formação do sistema solar interior. Ela recebe este nome porque a sua existência foi primeiramente proposta pelo astrônomo holandês Jan Hendrik Oort (1900-1992). A nuvem de Oort é considerada como o local de onde se originam os cometas e representa o limite final da influência gravitacional do Sol. Ela está localizada a aproximadamente 1 ano-luz do Sol, ou seja, a um quarto da distância até Proxima Centauri, a estrela mais próxima do Sol.

O autor do conto “O turbilhão de Oort” (The Oort crowd em inglês) faz um trocadilho com Oort cloud, o termo em inglês para a nuvem de Oort. Na impossibilidade de repetir, em português, o trocadilho feito pelo autor, optei pela tradução livre do título, o qual me parece condizente com o teor do conto. O conto apresenta uma discussão da questão da vida no universo (e.g., Soares 2007), especificamente no sistema solar, e neste contexto defende uma atitude humana ecologicamente responsável para a preservação e respeito à vida em todas as formas.

Uma região semelhante, mas mais próxima do Sol é também mencionada no conto. Trata-se do cinturão de Kuiper, que se localiza desde a órbita de Netuno (a 30 UA do Sol) até aproximadamente 50 UA. A sua existência foi proposta pelo astrônomo holandês Gerard Kuiper (1905-1973). O cinturão de Kuiper é também constituído de pequenos corpos que restaram da nebulosa protossolar. Ele está bem mais próximo do Sol do que a nuvem de Oort, que está a mais de 60.000 UA (≈ 1 ano-luz).

A seguir apresentarei o texto inglês e a tradução. O texto original foi fatiado em blocos. The Oort crowd está publicado em Nature, vol. 406, 13 de julho de 2000.

2. Tradução

The Oort crowd
The gods truly are moving in mysterious ways.

As we enter the first year of the 23rd century (or the last year of the 22nd — some arguments never go away) we look back with satisfaction at the triumphs of science and technology in the first two centuries of the third millennium. The advances in medicine, in biotechnology, in communications, in atmospheric engineering have been more than adequately celebrated elsewhere. They are familiar to the most isolated farmer on the barest rocks of Antarctica. But in long-term significance for the human prospect, nothing can compare to the discovery of the gods.

The word ‘gods’ is used advisedly. Humanity’s earliest speculations about the nature of any superhuman intelligences with which it might share the Universe are, paradoxically, more relevant to our real situation than the predictions of alien contact in the once-popular genre of science fiction. It must be admitted, however, that some of its practitioners (see, for example, Boyce, 1998, http://www.et-presence.ndirect.co.uk) reached part of the truth.

O turbilhão de Oort
Os deuses realmente estão se movimentando de formas misteriosas.

Ao entrar no primeiro ano do 23o século (ou o último ano do 22o — certos debates nunca desaparecem) olhamos com satisfação para os triunfos da ciência e da tecnologia nos primeiros dois séculos do terceiro milênio. Os progressos na medicina, na biotecnologia, nas comunicações, na engenharia atmosférica foram celebrados mais do que adequadamente em outro local. Eles são familiares para o fazendeiro mais isolado, nas pedras mais nuas da Antártida. Mas em importância de longo prazo para as esperanças humanas, nada pode se comparar à descoberta dos deuses.

A palavra ‘deuses’ é deliberadamente usada. As especulações iniciais da humanidade sobre quaisquer inteligências sobre-humanas com as quais ela pode compartilhar o Universo são, paradoxalmente, mais relevantes para a nossa situação concreta do que as previsões de contato alienígena do gênero outrora popular da ficção científica. Deve-se admitir, contudo, que alguns de seus adeptos (ver, por exemplo, Boyce, 1998, http://www.et-presence.ndirect.co.uk) alcançaram parte da verdade.

That truth, as we all know, is that a large, undetermined and (for good reason) indeterminable fraction of the bodies in the asteroid belt, the Kuiper Belt and the Oort Cloud are the sites of complex intelligent life. The precise evolutionary route(s) from extremophilic microorganisms to intelligence, apparently bypassing multicellular organization, remain unknown and perhaps (again, for good reason) unknowable. Computer simulations have yielded interesting, if inconclusive, results (Chang-Hoskins, 2197, provides a useful overview).

Those of our readers who have benefited from advances in medicine may recollect, and our younger readers can easily retrieve, the excitement that greeted the initial, accidental discovery of an ET intelligence in 2031. The first downloads from the Gates Foundation asteroid prospector revealed, not the potential wealth of resources expected in a carbonaceous chondrite, but a complex interior structure variously described as ‘crystalline’, ‘fractal’ and ‘organic’. Fortunately for scientific openness, the drilling operation was webcast live, and as the pictures slowly scrolled down the screens of a few hundred thousand space enthusiasts, the news spread across the net faster than a virus.

Aquela verdade, como todos sabemos, é que uma fração grande, indeterminada e (por uma boa razão) indeterminável dos corpos do cinturão de asteroides, do Cinturão de Kuiper e da Nuvem de Oort são os sítios de vida inteligente complexa. A(s) trajetória(s) evolucionária(s) precisa(s) de microrganismos extremófilos para a inteligência, aparentemente evitando a organização multicelular, permanece desconhecida e talvez (de novo, por uma boa razão) incognoscível. As simulações computacionais deram resultados interessantes, apesar de inconclusivos (Chang-Hoskins, 2197, apresenta um resumo interessante).

Aqueles dentre os nossos leitores que se beneficiaram dos avanços da medicina devem se lembrar, e os nossos leitores mais jovens podem facilmente se informar, da excitação que cercou a primeira descoberta, acidental, de uma inteligência ET em 2031. As primeiras transferências do prospector de asteroides da Fundação Gates revelaram, não a opulência potencial de recursos esperada em um condrito carbonáceo, mas uma estrutura interior complexa variadamente descrita como ‘cristalina’, ‘fractal’ e ‘orgânica’. Felizmente para a transparência científica, a operação de perfuração foi transmitida ao vivo pela web, e assim que as fotografias lentamente se sucederam nas telas de umas poucas centenas de milhares de entusiastas espaciais, as notícias se espalharam pela rede mais rápido do que um vírus.

In those first hasty, misspelled e-mails and postings we can see — from references to the structure as ‘the alien computer’ or ‘Asteroid City’ or even as ‘the starship’ — the depth of initial misapprehension. Far from having been built by beings broadly similar to ourselves, the structure itself was the alien, or the civilization — the nature and number of centres of consciousness within it remain controversial. And it was neither alone nor isolated.

Billions of years of evolutionary ‘tuning’ have given the cometary minds an exquisite sensitivity to the electromagnetic output of each other’s internal chemical and physical processes. Their communications are, once looked for, as detectable as they are incomprehensible. Some of the larger bodies in the Oort seem to act as relays, extending the communications net across solar and possibly interstellar distances. (As is known, the tenuous outer reaches of the Oort Cloud intersect those of their Centaurian equivalent.)

Naqueles primeiros e-mails e postagens apressados e mal digitados podemos ver — a partir das referências às estruturas como ‘o computador alienígena’ ou ‘Cidade Asteróide’ ou mesmo como ‘a nave espacial’ — a profundidade do equívoco inicial. Longe de ter sido construída por seres essencialmente semelhantes a nós, a própria estrutura era o alienígena, ou a civilização — a natureza e o número de centros de consciência em seu interior permanecem controversos. E ela não estava nem sozinha nem isolada.

Bilhões de anos de ‘ajuste’ evolucionário deram às mentes cometárias uma sensibilidade requintada à emissão eletromagnética dos processos químicos e físicos de uns e de outros. As suas comunicações são, quando examinadas, tão detectáveis quanto incompreensíveis. Alguns dos corpos maiores de Oort parecem agir como relés, estendendo a rede de comunicações através de distâncias solares e possivelmente interestelares. (Como é sabido as tênues extensões externas da Nuvem de Oort intersectam aquelas de sua equivalente centauriana.)

Despite strenuous efforts, no human communication with the extraterrestrial minds has been established (the results claimed by Lunan, 2049, are at best ambiguous). They are, to us, in precisely the position of the gods postulated by Epicurus, serene in the spaces between the worlds.

These gods, while indifferent, are not passive. Subtle control over their outgassings results, over very long periods, in orbital changes. More rapid processes occur within the asteroids. Careful study of recent and historical Near-Earth Objects suggests that the orbits of at least some NEOs have been the result of conscious intent.

Apesar de extenuantes esforços, nenhuma comunicação humana com as mentes extraterrestres foi estabelecida (os resultados reivindicados por Lunan, 2049, são no mínimo ambíguos). Elas estão, para nós, precisamente na posição postulada por Epicuro, serenas nos espaços entre os mundos.

Estes deuses, embora indiferentes, não são passivos. Um controle sutil sobre suas liberações de gases, durante períodos muito longos, resulta em mudanças orbitais. Processos mais rápidos ocorrem entre os asteroides. Um estudo detalhado dos Objetos Próximos da Terra recentes e históricos sugere que as órbitas de pelo menos alguns OPTs foram o resultado de um propósito consciente.

In view of the above, it appears in retrospect unfortunate that the first probe to the Oort Cloud and beyond, launched in 2030, should have used as its initial means of propulsion a plasma sail consisting of ionized gas within a ‘magnetic bubble’ thousands of kilometres across, and as its secondary means a prototype ‘electromagnetic ramscoop’ sucking in vast quantities of interstellar and cometary matter. Subsequent changes in the volume and intensity of intercometary communication, and in the orbits of numerous comets and asteroids, cannot be accounted for by the physical effects of its passage. They can only be considered a response.

The effect on human society of the discovery of the gods has been positive. Excluded from many of the space-based resources once thought unoccupied, we turn to a less profligate use of our planet’s own. The expectations of John Stuart Mill, in his famous chapters on the “stationary state” and “the probable futurity of the labouring classes”, have been largely realized.

Em vista do que foi dito, parece, em retrospectiva, lamentável que a primeira sonda para a Nuvem de Oort e além, lançada em 2031, devesse ter usado como seu meio inicial de propulsão uma vela de plasma que consistia de gás ionizado dentro de uma ‘bolha magnética’ de milhares de quilômetros de largura, e como seu meio secundário um protótipo de um ‘aríete de cavidade eletromagnética’ sugando enormes quantidades de matéria interestelar e cometária. As mudanças subsequentes no volume e na intensidade da comunicação intercometária, e nas órbitas de numerosos cometas e asteroides, não podem ser explicados pelos efeitos físicos de sua passagem. Elas só podem ser consideradas como uma resposta.

O efeito da descoberta dos deuses sobre a sociedade humana tem sido positivo. Excluídos de muitos dos recursos de fontes espaciais outrora consideradas desocupadas, nós nos voltamos para um uso menos perdulário das fontes de nosso próprio planeta. As expectativas de John Stuart Mill, em seus famosos capítulos sobre o “estado estacionário” e “o provável futuro das classes trabalhadores”, foram em grande parte concretizadas.

But, as our astronomical and space-defence workers’ cooperatives continue their urgent sky-watching, there may be some risk of overlooking a danger closer to home. There is no reason to suppose that extremophilic consciousness is confined to minor interplanetary bodies. Perhaps the majority of the Earth’s biomass consists of subterranean extremophiles.

Watch the ground.

Mas, enquanto as nossas associações astronômicas e de defesa espacial continuam suas indispensáveis observações celestes, pode haver o risco de se ignorar um perigo mais próximo de casa. Não há qualquer razão de se supor que a consciência extremofílica esteja confinada a corpos interplanetários menores. Talvez a maioria da biomassa da Terra consista de extremófilos subterrâneos.

Preste atenção no chão.



Atualização: 04ago20


Leia outros artigos em www.fisica.ufmg.br/dsoares/notices.htm.