Uma coincidência cósmica sem causa?

(Publicado em Revista Valore, 4 (Edição Especial): 145-154. Dez/2019)

Domingos Soares

25 de setembro de 2017

A Lua é um buraco no céu
através do qual eu olho o Sol.


D. Soares, Poemas Astrocósmicos

No dia 21 de agosto passado ocorreu um eclipse do Sol. O disco lunar passou lentamente pela frente do disco solar e, em alguns locais da Terra, a sombra da Lua tornou o dia em noite por quase 3 minutos. Este é o chamado eclipse total do Sol. Em outros locais tivemos eclipses parciais (inclusive, em parte do Brasil) e em outros locais não houve eclipse.

Um eclipse total acontece porque o disco lunar é aproximadamente do mesmo tamanho que o disco solar quando vistos da Terra. E isto é uma grande coincidência. O Sol está a 150 milhões de quilômetros da Terra (DS) e a Lua a cerca de 400 mil quilômetros (DL). Os seus diâmetros reais (dS e dL) são tais que a estas distâncias são vistos com os mesmos tamanhos aparentes projetados na abóbada celeste (θ = dS/DS ≈ dL/DL ≈ 0,5 grau). Por que esta coincidência?


Os tamanhos aparentes da Lua e do Sol quando vistos da Terra pelo observador em O são aproximadamente os mesmos, ou seja, dS/DS ≈ dL/DL ≈ 0,5 grau.


Sabemos que a Lua tem uma importância fundamental para a qualidade do ambiente terrestre, a saber, na manutenção de uma sucessão suave de estações do ano. Isto é o resultado da ação da Lua na estabilização da inclinação do eixo de rotação da Terra (cf. Soares 2007). A vida humana no planeta é mais sustentável sem mudanças drásticas e imprevisíveis do clima. Devemos a estabilidade sazonal ao nosso satélite. Mas isto não requer que dS/DS ≈ dL/DL.

A Lua se afasta da Terra atualmente cerca de 4 cm por ano. A causa do aumento da distância Terra-Lua (DL) é a transferência de energia rotacional da Terra para a energia orbital da Lua devido à interação gravitacional no sistema. Utilizando-se a lei da gravitação universal bem como a lei da conservação do momento angular obtém-se este resultado.

Em 100 milhões de anos a distância Terra-Lua passará a ser 4.000 km maior e, consequentemente, o tamanho aparente da Lua será 1% menor. A idade da Terra é de mais de 4 bilhões de anos, então, com a mudança do tamanho aparente da Lua em 1% a cada 100 milhões de anos — ou a uma taxa maior no passado — a coincidência mencionada acima fica evidente. Por que o tamanho aparente da Lua é o mesmo do Sol exatamente agora quando nós, seres inteligentes — capazes, por exemplo, de prever com antecedência a ocorrência de eclipses — andamos pelo planeta Terra?

Há ainda outros fatores que podem ser considerados e que poderiam ter impedido a coincidência como, por exemplo, o tamanho da Lua (massa e densidade). Se a densidade da Lua fosse diferente de seu valor atual a coincidência não existiria.

Uma coincidência cósmica sem causa?

A resposta deve estar na evolução dinâmica do sistema Terra-Lua-Sol, a qual não é bem entendida porque existem, antes de tudo, mais do que uma teoria para a formação da Lua. Para lançar alguma luz sobre o problema, podemos investigar outra coincidência no sistema Terra-Lua-Sol, a saber, a quase igualdade da razão entre a densidade média da Lua e do Sol com a razão entre as forças de maré diferenciais exercidas pela Lua e pelo Sol sobre a Terra.

As densidades médias da Lua e do Sol são:

$\rho_L = {M_L \over d_L^3}$,

$\rho_S = {M_S \over d_S^3}$,

onde $M_L$ e $M_S$ são as massas da Lua e do Sol e o fator numérico π/6 da expressão do volume foi omitido.

Agora, calculemos as forças diferenciais de maré sobre massas m separadas por uma distância Δr, na superfície da Terra, exercidas pela Lua e pelo Sol, sendo estas ΔFL e ΔFS (cf., por exemplo, Efeitos de Maré, por K. Oliveira Filho e M.F. Saraiva).

$\Delta F_L = 2Gm{M_L \over D_L^3}\Delta r$

$\Delta F_S = 2Gm{M_S \over D_S^3}\Delta r$,

onde G é a constante de gravitação universal.

Façamos f1 = ρLS e f2 = ΔFL/ΔFS. Pode-se encontrar, inserindo as quantidades conhecidas nas expressões acima, que

f1 = ${\rho_L \over \rho_S} = 2,38$,

f2 = ${\Delta F_L \over \Delta F_S} = 2,19$.

Daí, é razoável fazer-se a aproximação f1 ≈ f2 e com esta igualdade aproximada obtém-se

${\rho_L \over \rho_S}$ = ${M_L d_S^3} \over {d_L^3 M_S }$ ≅ ${\Delta F_L \over \Delta F_S}$ = ${M_L D_S^3} \over {D_L^3 M_S }$,

a qual pode ser escrita como

${d_S^3} \over {D_S^3 }$ $\cong$ ${d_L^3} \over {D_L^3 }$,

e finalmente como

${d_S} \over {D_S}$ $\cong$ ${d_L} \over {D_L }$,

significando, naturalmente, que a Lua e o Sol têm aproximadamente o mesmo tamanho aparente no céu.

Por que as razões f1 e f2 são aproximadamente iguais? Tal resultado e sua consequência imediata (${d_S}/{D_S}$ $\cong$ ${d_L}/{D_L }$) mostram que a explicação procurada para a coincidência apresentada no início deve estar de fato no estudo da evolução dinâmica secular do sistema de três corpos constituído pela Terra, Lua e Sol, uma tarefa, sem dúvida, extraordinária.


Atualização: 10jun20


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