Física aqui, lá e em todo lugar

Domingos Soares

03 de setembro de 2020




Resumo

As leis da física têm, em geral, aplicação restrita. Às vezes funcionam com alta precisão localmente (“aqui”), com precisão aceitável fora da Terra (“lá”) e, eventualmente, falham completamente em aplicações gerais e irrestritas (“em todo lugar”). Discuto alguns exemplos específicos que se enquadram em uma ou outra destas situações. A discussão é inspirada em uma das “Regras de Raciocínio em Filosofia”, do sábio inglês Isaac Newton.


1. Introdução

A obra máxima de Isaac Newton (1643-1727) foi publicada em 1687, em latim, o idioma científico da época. O seu título original é Philosophiae Naturalis Principia Mathematica ou Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A “Filosofia Natural” de seu tempo pode ser identificada com o que chamamos de “Física” modernamente. Após a primeira edição, Newton publicou duas edições corrigidas e expandidas em 1713 e 1726. O livro foi traduzido para vários idiomas, inclusive para o português (ver, por exemplo, Assis 2008). A tradução do latim para o inglês foi realizada por Andrew Motte (1696-1734) a partir da edição de 1726 e é até hoje utilizada.

O Principia — como o livro de Newton é abreviadamente conhecido — é dividido em três partes. O Livro I contém as definições, as leis do movimento e seus corolários, o Livro II aplica as leis para o movimento de corpos em meios resistivos, e o Livro III é intitulado Sistema do Mundo e nele Newton apresenta a sua cosmologia. É lá que aparece a Lei da Gravitação Universal (LGU) e suas aplicações.

No Livro III, Newton apresenta também as suas quatro “Regras de Raciocínio em Filosofia”. A Regra II é a que nos interessa na presente discussão. A Figura 1 mostra uma reprodução da página do Livro III onde aparecem as três primeiras regras. Em seguida apresento a minha versão para o português da Regra II.



Figura 1

Três das quatro “Regras de Raciocínio em Filosofia” que estão no Livro III do Principia. O texto em inglês é da tradução do latim feita por Andrew Motte a partir da última edição revisada por Newton em 1726.


REGRAS DE RACIOCÍNIO EM FILOSOFIA

REGRA II

Portanto aos mesmos efeitos naturais devemos, sempre que possível, atribuir as mesmas causas.

Como a respiração num homem e num animal; a queda das pedras na Europa e na América. a luz de nosso fogo culinário e do sol; a reflexão da luz na terra, e nos planetas.

(O sublinhado é meu.) Vemos que Newton, enquanto defendendo a mesma física aqui, lá e em todo lugar, estava aberto à possiblidade de uma nova física (cf. a expressão “sempre que possível”). Newton foi comprovadamente um dos expoentes da física “aqui”. Restringindo-nos à mecânica e à gravitação, são conhecidos os sucessos newtonianos no estudo das marés oceânicas, da precessão dos equinócios e do movimento dos corpos em meios resistivos, por exemplo.

Obviamente, com o desenvolvimento tecnológico, a precisão dos experimentos e das observações astronômicas aumentaram extraordinariamente e começaram a aparecer problemas nas aplicações da física de Newton, especialmente, “lá”. Na próxima seção apresentarei exemplos de leis da física aplicadas “lá” e “em todo lugar”, algumas das limitações destas leis e alguns de seus sucessos. Na última seção apresentarei as minhas considerações adicionais.

2. Física lá e em todo lugar

Apresentarei aqui alguns dos problemas encontrados por leis da física, de grande sucesso “aqui”, em aplicações “lá” e “em todo lugar”. Além de Newton, outros personagens científicos surgirão neste contexto. Especificamente, discutirei exemplos da física do sistema solar e da cosmologia.

2.1. Lei da Gravitação Universal

A LGU e as leis do movimento de Newton tiveram enorme sucesso em suas aplicações “aqui” na Terra como, por exemplo, no estudo da queda dos corpos, no cálculo das marés oceânicas, no estudo do movimento da Lua e na dedução do período da precessão dos equinócios terrestres (uma consequência do giro do eixo de rotação da Terra).

O seu sucesso também foi extraordinário no estudo “lá”, a saber, na investigação do movimento planetário, especialmente na explicação teórica das leis do movimento planetário do astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler (1571-1630) e nos cálculos das órbitas dos planetas e cometas.

Agora, um dos maiores questionamentos da gravitação newtoniana ocorreu quando as observações das órbitas planetárias indicaram a existência do fenômeno da precessão do periélio. O fenômeno é bastante pronunciado para a órbita de Mercúrio. A órbita de Mercúrio não é uma elipse fechada, mas é uma curva aberta. Pode-se considerá-la como uma elipse cujo eixo maior gira (Figura 2). A rotação do eixo maior orbital é denominada precessão orbital. O ponto de maior aproximação do Sol, o chamado periélio também gira e temos então a “precessão do periélio”.



Figura 2

A órbita de Mercúrio em torno Sol não é fechada. O eixo maior da órbita gira, i.e., precessa, durante o movimento orbital. O ponto da órbita de menor distância até o Sol é o “periélio” e também gira. Este giro é medido através do ângulo Ψ. A variação temporal de Ψ é chamada de “precessão do periélio” (mais detalhes em Miranda 2019, de onde a figura foi extraída).


A lei de força da LGU possui uma dependência com o inverso do quadrado da distância R até o centro de forças (1/R2). Este tipo de dependência leva sempre à existência de uma órbita fechada em sistemas ligados gravitacionalmente. Uma curva aberta como a da Figura 2 ocorre quando a lei de atração deixa de ter esta forma, ou seja, passa a ser da forma 1/Rn onde n ≠ 2. Esta mudança poderia ser causada pela perturbação gravitacional causada pelos outros planetas sobre Mercúrio. O problema é que quando estas perturbações foram consideradas, a precessão do periélio obtida não concordava com as observações astronômicas. A LGU estava claramente falhando “lá”! A solução do problema ocorreu com o estabelecimento de novas leis de gravitação, como veremos a seguir.

2.2. Teoria da Relatividade Geral

Albert Einstein (1879-1955) terminou a formulação de sua teoria de gravitação, a Teoria da Relatividade Geral (TRG), em novembro de 1915. Um de seus primeiros cálculos usando a nova teoria foi a determinação da precessão do periélio de Mercúrio (ver Miranda 2019 para uma descrição detalhada deste trabalho de Einstein). Ele utilizou as suas equações de campo (Soares 2020a, cap. 1, eq. 1.4) para calcular o termo adicional de precessão, que era uma consequência da curvatura do espaço na região da órbita de Mercúrio. O resultado foi uma concordância perfeita com os dados observacionais. Temos então o sucesso de uma nova teoria. (A TRG, no entanto, encontrará os seus próprios problemas, como veremos abaixo.)

O cálculo feito por Einstein foi obtido a partir da solução das equações de campo para o vácuo, ou seja, para o exterior do Sol. Ele não obteve a solução geral para este caso, mas apenas as perturbações sobre o resultado newtoniano. A solução geral para o vácuo foi obtida no ano seguinte pelo astrofísico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916), que levou a extraordinárias aplicações adicionais da TRG (ver Soares 2020a, cap. 13, para uma discussão sobre a solução de Schwarzschild).

2.3. Mecânica Relacional

O físico brasileiro André Assis propôs uma nova lei de gravitação, a saber, a lei de Weber gravitacional. Originalmente, a força de Weber foi proposta pelo físico alemão Wilhelm Eduard Weber (1804-1891), um dos grandes cientistas do século XIX, contemporâneo do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), como uma alternativa ao eletromagnetismo de Maxwell. Ela representa a interação mais geral entre cargas elétricas, as quais podem estar em movimento e aceleradas. Assis, inspirado na lei eletromagnética de Weber, criou uma versão gravitacional da mesma, onde as cargas são substituídas por massas e as constantes existentes na lei de Weber original são mudadas.

Com a nova lei gravitacional e, também, com uma nova mecânica, denominada Mecânica Relacional (MR, Assis 2013), ele obtém vários resultados que vão além das previsões da LGU, entre eles o cálculo da precessão do periélio dos planetas e especificamente do planeta Mercúrio. O resultado da MR concorda com as observações astronômicas e representa também uma melhoria do cálculo newtoniano (ver cap. 23 de Assis 2013). Temos então uma nova teoria para explicar fenômenos “lá”.

2.4. Efeito Hubble

Nos casos anteriores tivemos casos de sucessos de novas teorias para a explicação de fenômenos “lá”. Veremos aqui um caso em que isto ainda não ocorreu. E aqui falamos não só de “lá”, mas também “em todo lugar”, pois sairemos dos limites do sistema solar. Trataremos aqui da relação cosmológica de natureza observacional conhecida como lei de Hubble.

A “lei de Hubble” é a relação linear existente entre os logaritmos dos desvios para o vermelho de objetos celestes distantes e as suas magnitudes aparentes. O desvio para vermelho é definido pela expressão z ≡ (λo - λ)/λ, onde λ é o comprimento de onda da radiação emitida e λo > λ é o comprimento de onda da radiação observada. A relação linear original de Hubble reduz-se à conhecida v = Hod através da substituição do desvio para o vermelho pela velocidade v do objeto e da magnitude pela distância d até o objeto (Ho é a chamada “constante de Hubble”). Os detalhes da manipulação matemática que leva uma formulação da lei de Hubble à outra estão descritos em Soares (2020a, cap. 9).

Ainda não existe uma explicação física satisfatória para esta lei. Desta forma, eu propus em Soares (2020a, cap. 9) que o mecanismo físico responsável pela lei de Hubble — ainda por ser elucidado — seja chamado de “efeito Hubble”.

Os mecanismos mais populares propostos para explicar a descoberta observacional de Hubble (e de seus antecessores e contemporâneos) são:

Então a busca pelo efeito Hubble continua. Este efeito será dado por uma nova lei física que deverá ser válida “aqui”, “lá” e especialmente “em todo lugar”.

2.5. Cosmologia

O MPC, ou modelo do Estrondão Quente, é derivado das soluções das equações de campo da TRG obtidas pelo físico russo Alexander Friedmann (1888-1925) e pelo cosmólogo belga Georges Lemaître (1894-1966) na década de 1920 (Soares 2020, cap. 8; Soares 2015a). Como afirmado acima, é o modelo dominante na cosmologia moderna, mas carece de comprovação observacional.

O seu maior problema é a necessidade de componentes não observadas de matéria e de energia para a sua sustentação teórica. Quer dizer, o modelo se sustenta sobre bases não observadas, a matéria escura bariônica, a matéria escura não bariônica e a também desconhecida energia escura, além de ter outras inconsistências com os fenômenos observados (cf. Soares 2015b).

Desta forma a cosmologia está em busca de nova física válida “em todo lugar”, como se requer de uma lei física que se propõe a explicar a estrutura e evolução do universo. A TRG, portanto, falhou em “em todo lugar” (ver detalhes em Soares 2020a, cap. 15).

3. Considerações finais

Uma nova física encontra sempre resistência na comunidade científica. As razões para isto são várias, desde convicções científicas arraigadas até o desejo de manutenção de poder dentro das comunidades acadêmica e científica. Este poder se manifesta de forma concreta no controle da distribuição de recursos financeiros públicos para a realização de pesquisas e de empreendimentos experimentais. A análise deste comportamento é complexa e possui aspectos sociológicos e científicos, os quais tratarei oportunamente. A manifestação desta resistência às vezes se manifesta de maneira sutil, como veremos a seguir, no caso da lei de Hubble.

A comunidade científica que adota o MPC tentou, talvez inconscientemente, associar de forma definitiva a lei dos desvios para o vermelho de Hubble com o MPC. Em outras palavras, a comunidade do Estrondão quer afirmar que o modelo de expansão do espaço é o responsável pela lei de Hubble, e assim resolver a questão da busca pelo efeito Hubble. E assim negar a necessidade de nova física para o problema. Um sinal desta tentativa ocorreu recentemente.

A assembleia geral da União Astronômica Internacional (IAU), de 2018, aprovou uma moção sugerindo a mudança do nome da “lei de Hubble” para “lei de Hubble-Lemaître”. Já apresentei a minha opinião contrária à mudança em Soares (2013). Como sugeriu o cosmólogo americano Eric Lerner, em recente manifestação (cf. Soares 2020b) “… a motivação da moção da IAU é obviamente tentar misturar a inquestionável correlação de Hubble com a muito questionável explicação da expansão e reivindicar que elas são exatamente as mesmas.” (Os sublinhados são meus.)

Quer dizer, consciente ou inconscientemente, esta é a verdadeira consequência da moção, tentar estabelecer a teoria da expansão do universo como algo intrinsicamente ligado à lei observacional de Hubble. Esta, como mencionado acima, ainda não possui uma explicação teórica satisfatória. O físico belga Georges Lemaître (1894-1966) foi um dos primeiros teóricos relativistas a propor, no final da década de 1920, a teoria da expansão e, consequentemente, a existência de um estrondão inicial. No final das contas, pode até ser que vivamos num universo em expansão, mas no estado atual do conhecimento científico, teórico, observacional e experimental, não é possível afirmar isto.

Referências

A. K. T. Assis, Princípios Matemáticos de Filosofia Natural, Livros II e III (tradução para o português de “Mathematical Principles of Natural Philosophy”, Isaac Newton), EDUSP, São Paulo (2008).

A. K. T. Assis, Mecânica Relacional e Implementação do Princípio de Mach com a Força de Weber Gravitacional, Apeiron, Montreal, Mecanica-Relacional-Mach-Weber.pdf (2013).

O. D. Miranda, Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza, v. 13, n. 2, p. 7, www.researchgate.net/publication/333442214 (2019).

D. Soares, Padre Lemaître e a expansão do universo, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/lemaitre/lemaitre.htm (2013).

D. Soares, O dilema da idade do universo, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/UAI/idade.htm (2015a).

D. Soares, Joel Primack e a imagética da escuridão, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/wish/primack-img.htm (2015b).

D. Soares, Tópicos em cosmologia relativista, www.researchgate.net/publication/338842995 (2020a).

D. Soares, COSMOS:19ago20, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/cosmos/20/cosmos10.htm (2020b).




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