03 de setembro de 2020
As leis da física têm, em geral, aplicação restrita. Às vezes funcionam com alta precisão localmente (“aqui”), com precisão aceitável fora da Terra (“lá”) e, eventualmente, falham completamente em aplicações gerais e irrestritas (“em todo lugar”). Discuto alguns exemplos específicos que se enquadram em uma ou outra destas situações. A discussão é inspirada em uma das “Regras de Raciocínio em Filosofia”, do sábio inglês Isaac Newton.
O Principia — como o livro de Newton é abreviadamente conhecido — é dividido em três partes. O Livro I contém as definições, as leis do movimento e seus corolários, o Livro II aplica as leis para o movimento de corpos em meios resistivos, e o Livro III é intitulado Sistema do Mundo e nele Newton apresenta a sua cosmologia. É lá que aparece a Lei da Gravitação Universal (LGU) e suas aplicações.
No Livro III, Newton apresenta também as suas quatro “Regras de Raciocínio em Filosofia”. A Regra II é a que nos interessa na presente discussão. A Figura 1 mostra uma reprodução da página do Livro III onde aparecem as três primeiras regras. Em seguida apresento a minha versão para o português da Regra II.
REGRA II
Portanto aos mesmos efeitos naturais devemos, sempre que possível, atribuir as mesmas causas.
Como a respiração num homem e num animal; a queda das pedras na Europa e na América. a luz de nosso fogo culinário e do sol; a reflexão da luz na terra, e nos planetas. (O sublinhado é meu.) Vemos que Newton, enquanto defendendo a mesma física aqui, lá e em todo lugar, estava aberto à possiblidade de uma nova física (cf. a expressão “sempre que possível”). Newton foi comprovadamente um dos expoentes da física “aqui”. Restringindo-nos à mecânica e à gravitação, são conhecidos os sucessos newtonianos no estudo das marés oceânicas, da precessão dos equinócios e do movimento dos corpos em meios resistivos, por exemplo.
Obviamente, com o desenvolvimento tecnológico, a precisão dos experimentos e das observações astronômicas aumentaram extraordinariamente e começaram a aparecer problemas nas aplicações da física de Newton, especialmente, “lá”. Na próxima seção apresentarei exemplos de leis da física aplicadas “lá” e “em todo lugar”, algumas das limitações destas leis e alguns de seus sucessos. Na última seção apresentarei as minhas considerações adicionais.
O seu sucesso também foi extraordinário no estudo “lá”, a saber, na investigação do movimento planetário, especialmente na explicação teórica das leis do movimento planetário do astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler (1571-1630) e nos cálculos das órbitas dos planetas e cometas.
Agora, um dos maiores questionamentos da gravitação newtoniana ocorreu quando as observações das órbitas planetárias indicaram a existência do fenômeno da precessão do periélio. O fenômeno é bastante pronunciado para a órbita de Mercúrio. A órbita de Mercúrio não é uma elipse fechada, mas é uma curva aberta. Pode-se considerá-la como uma elipse cujo eixo maior gira (Figura 2). A rotação do eixo maior orbital é denominada precessão orbital. O ponto de maior aproximação do Sol, o chamado periélio também gira e temos então a “precessão do periélio”.
A lei de força da LGU possui uma dependência com o inverso do quadrado da distância R até o centro de forças (1/R2). Este tipo de dependência leva sempre à existência de uma órbita fechada em sistemas ligados gravitacionalmente. Uma curva aberta como a da Figura 2 ocorre quando a lei de atração deixa de ter esta forma, ou seja, passa a ser da forma 1/Rn onde n ≠ 2. Esta mudança poderia ser causada pela perturbação gravitacional causada pelos outros planetas sobre Mercúrio. O problema é que quando estas perturbações foram consideradas, a precessão do periélio obtida não concordava com as observações astronômicas. A LGU estava claramente falhando “lá”! A solução do problema ocorreu com o estabelecimento de novas leis de gravitação, como veremos a seguir.
O cálculo feito por Einstein foi obtido a partir da solução das equações de campo para o vácuo, ou seja, para o exterior do Sol. Ele não obteve a solução geral para este caso, mas apenas as perturbações sobre o resultado newtoniano. A solução geral para o vácuo foi obtida no ano seguinte pelo astrofísico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916), que levou a extraordinárias aplicações adicionais da TRG (ver Soares 2020a, cap. 13, para uma discussão sobre a solução de Schwarzschild).
Com a nova lei gravitacional e, também, com uma nova mecânica, denominada Mecânica Relacional (MR, Assis 2013), ele obtém vários resultados que vão além das previsões da LGU, entre eles o cálculo da precessão do periélio dos planetas e especificamente do planeta Mercúrio. O resultado da MR concorda com as observações astronômicas e representa também uma melhoria do cálculo newtoniano (ver cap. 23 de Assis 2013). Temos então uma nova teoria para explicar fenômenos “lá”.
A “lei de Hubble” é a relação linear existente entre os logaritmos dos desvios para o vermelho de objetos celestes distantes e as suas magnitudes aparentes. O desvio para vermelho é definido pela expressão z ≡ (λo - λ)/λ, onde λ é o comprimento de onda da radiação emitida e λo > λ é o comprimento de onda da radiação observada. A relação linear original de Hubble reduz-se à conhecida v = Hod através da substituição do desvio para o vermelho pela velocidade v do objeto e da magnitude pela distância d até o objeto (Ho é a chamada “constante de Hubble”). Os detalhes da manipulação matemática que leva uma formulação da lei de Hubble à outra estão descritos em Soares (2020a, cap. 9).
Ainda não existe uma explicação física satisfatória para esta lei. Desta forma, eu propus em Soares (2020a, cap. 9) que o mecanismo físico responsável pela lei de Hubble — ainda por ser elucidado — seja chamado de “efeito Hubble”.
Os mecanismos mais populares propostos para explicar a descoberta observacional de Hubble (e de seus antecessores e contemporâneos) são:
O seu maior problema é a necessidade de componentes não observadas de matéria e de energia para a sua sustentação teórica. Quer dizer, o modelo se sustenta sobre bases não observadas, a matéria escura bariônica, a matéria escura não bariônica e a também desconhecida energia escura, além de ter outras inconsistências com os fenômenos observados (cf. Soares 2015b).
Desta forma a cosmologia está em busca de nova física válida “em todo lugar”, como se requer de uma lei física que se propõe a explicar a estrutura e evolução do universo. A TRG, portanto, falhou em “em todo lugar” (ver detalhes em Soares 2020a, cap. 15).
A comunidade científica que adota o MPC tentou, talvez inconscientemente, associar de forma definitiva a lei dos desvios para o vermelho de Hubble com o MPC. Em outras palavras, a comunidade do Estrondão quer afirmar que o modelo de expansão do espaço é o responsável pela lei de Hubble, e assim resolver a questão da busca pelo efeito Hubble. E assim negar a necessidade de nova física para o problema. Um sinal desta tentativa ocorreu recentemente.
A assembleia geral da União Astronômica Internacional (IAU), de 2018, aprovou uma moção sugerindo a mudança do nome da “lei de Hubble” para “lei de Hubble-Lemaître”. Já apresentei a minha opinião contrária à mudança em Soares (2013). Como sugeriu o cosmólogo americano Eric Lerner, em recente manifestação (cf. Soares 2020b) “… a motivação da moção da IAU é obviamente tentar misturar a inquestionável correlação de Hubble com a muito questionável explicação da expansão e reivindicar que elas são exatamente as mesmas.” (Os sublinhados são meus.)
Quer dizer, consciente ou inconscientemente, esta é a verdadeira consequência da moção, tentar estabelecer a teoria da expansão do universo como algo intrinsicamente ligado à lei observacional de Hubble. Esta, como mencionado acima, ainda não possui uma explicação teórica satisfatória. O físico belga Georges Lemaître (1894-1966) foi um dos primeiros teóricos relativistas a propor, no final da década de 1920, a teoria da expansão e, consequentemente, a existência de um estrondão inicial. No final das contas, pode até ser que vivamos num universo em expansão, mas no estado atual do conhecimento científico, teórico, observacional e experimental, não é possível afirmar isto.
A. K. T. Assis, Mecânica Relacional e Implementação do Princípio de Mach com a Força de Weber Gravitacional, Apeiron, Montreal, Mecanica-Relacional-Mach-Weber.pdf (2013).
O. D. Miranda, Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza, v. 13, n. 2, p. 7, www.researchgate.net/publication/333442214 (2019).
D. Soares, Padre Lemaître e a expansão do universo, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/lemaitre/lemaitre.htm (2013).
D. Soares, O dilema da idade do universo, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/UAI/idade.htm (2015a).
D. Soares, Joel Primack e a imagética da escuridão, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/wish/primack-img.htm (2015b).
D. Soares, Tópicos em cosmologia relativista, www.researchgate.net/publication/338842995 (2020a).
D. Soares, COSMOS:19ago20, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/cosmos/20/cosmos10.htm (2020b).