Objeto de Gravitação Extrema

Domingos Soares

23 de maio de 2017

Resumo

Apresento uma alternativa para a identificação da “singularidade de Schwarzschild”, usualmente conhecida como “buraco negro”, nome cunhado pelo físico John Archibald Wheeler. Proponho associar à singularidade de Schwarzschild a denominação “objeto de gravitação extrema”. A diferença fundamental entre o objeto de gravitação extrema e o buraco negro é que o primeiro possui estrutura espaço-temporal convencional.


1. Introdução

Imediatamente após a conclusão da Teoria da Relatividade Geral (TRG) por Albert Einstein (1879-1955) em 1915, o astrônomo e físico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916) obteve uma solução particular das equações de campo da TRG que se revelou extremamente importante. Ele tinha a intenção de aplicá-la a estrelas sem rotação (ou com rotação desprezível) e perfeitamente esféricas. A sua solução apresenta uma singularidade na equação da métrica, i.e., um resultado infinito para determinado valor das coordenadas espaciais. Pode-se dizer, de maneira geral, que a métrica representa a geometria espaço-temporal de um espaço-tempo qualquer e fornece a maneira de se calcular a distância entre dois eventos quaisquer, os quais são caracterizados por três coordenadas espaciais e uma temporal. A métrica de Schwarzschild é dada por (equação 6 de Soares 2014):

. (1)

M é a massa do corpo, G é a constante de gravitação universal e c é a velocidade da luz no vácuo. Nota-se imediatamente que a métrica ds de Schwarzschild diverge para infinito em r = RS = 2GM/c2, onde RS é chamado raio de Schwarzschild (seção 2 de Soares 2009).

Einstein e o astrofísico inglês Arthur Eddington (1882-1944), as maiores autoridades em TRG nas décadas iniciais após a sua formulação, rejeitaram qualquer significado físico associado à singularidade por razões óbvias (ver mais detalhes em Einstein 1939). As pesquisas relacionadas à “singularidade de Schwarzschild” (SS) começaram somente na década de 1960, especialmente a partir de 1967, quando John Archibald Wheeler (1911-2008) cunhou o termo “buraco negro” (BN) para identificá-las.

O BN logo passou a ter status de “objeto real” e várias consequências físicas, astronômicas e cosmológicas foram deduzidas a partir dele. Mas o BN é fundamentalmente, e não deixará de ser, o nome do “desconhecido”, já que está associado a uma singularidade matemática. Este objeto, portanto e de fato, não existe. Se BNs não existem, então o quê? Que objeto astronômico deve ser associado à singularidade de Schwarzschild? É o que me proponho a responder.

Na próxima seção apresento algumas características da SS que são geralmente atribuídas aos BNs. A seção 3 é dedicada à resposta da pergunta aqui formulada. Finalizo com algumas considerações adicionais.

2. Singularidade de Schwarzschild

A SS é identificada atualmente com o BN. Usualmente diz-se que um BN é um objeto de altíssima densidade. É importante esclarecer esta ideia antes de se encontrar uma melhor conceituação física para a SS, como proposto na seção anterior. Veremos que a SS — o BN — pode ter densidade baixíssima.

Seja ρS a densidade média no interior da esfera de raio igual ao raio de Schwarzschild, ou seja, ρS = M/[(4/3)πRS3]. Consideremos agora BNs que são frequentemente discutidos na literatura científica moderna:

(Os raios de Schwarzschild RS foram calculados com a expressão RS = 3 (M/MSol) km, cf. seção 2.2 de Soares 2017.)

A figura 1 mostra a posição destes três BNs no diagrama ρS × RSS ∝ 1/RS2; as escalas dos eixos estão expressas como os logaritmos das coordenadas). A densidade da água (H2O) está assinalada e pode-se ver que podemos ter BNs com quaisquer densidades médias, muito maiores ou muito menores do que a densidade da água. Em particular o putativo BN de massa estelar possui ρ = 2×1016 (20 mil trilhões) g/cm3, o BN do centro da Via Láctea possui ρ = 10.000 g/cm3 e o BN do centro de M87 possui densidade igual a 0,0004 g/cm3.



Figura 1

Singularidades de Schwarzschild no diagrama ρS×RS: S, massa igual 1 MSol, RS=3 km, VL, massa igual a 4×106 MSol, RS=1×107 km ≈ 15×RSol e M87, massa igual a 6×109 MSol, RS= 2×1010 km ≈ 130×dSol-Terra.


Esta análise mostra que o objeto associado à SS não tem necessariamente altíssima densidade. O objeto também não pode ser associado a r = RS pois temos aí um valor infinito para a métrica. Então o objeto deverá ser definido para r > RS, mas tão próximo de RS quanto se queira, ou seja, o objeto será definido para r → RS. Passemos então à sua definição.

3. Objeto de Gravitação Extrema

Na vizinhança de r = RS a curvatura espaço-temporal é muito grande. A curvatura espaço-temporal é a representação na TRG do potencial gravitacional newtoniano. Na verdade, temos para r → RS uma curvatura espaço-temporal extrema e, portanto, uma gravitação extrema. Senão, vejamos.

Se estamos tão próximos da SS quanto quisermos temos, portanto, r → 2GM/c2, cujos termos podem ser rearranjados na forma GM/r → (1/2)c2. Vemos então que M/r (∝ potencial gravitacional) tende para um valor extremo (c2/2G). Já M/r3 (∝ densidade no interior da esfera de raio r) pode, como vimos, ser grande ou pequena. Em outras palavras, o empacotamento de matéria-energia é extremo, mas isto não significa necessariamente que a densidade seja também extrema no interior de r = RS. O que é extremo é o empacotamento e consequentemente a gravitação na vizinhança de r = RS.

Em vista do dito acima o novo objeto, que existe imediatamente antes do raio de Schwarzschild, pode ser apropriadamente chamado de “objeto de gravitação extrema” (daqui em diante “gravex”). Antes de se atingir o estágio de um gravex podemos ter objetos de grande gravitação como estrelas anãs brancas e estrelas de nêutrons, se considerarmos apenas objetos de massas estelares. Estas estrelas são compactas mas possuem raios maiores do que os raios de Schwarzschild correspondentes às suas massas.

A figura 2 ilustra a configuração espaço-temporal do gravex ao lado das anãs brancas e das estrelas de nêutrons. O raio de Schwarzschild define, neste novo contexto, uma superfície esférica denominada “horizonte de gravitação extrema”; um gravex de qualquer massa, por definição, nunca atinge este horizonte. Os gravex, como os BNs, podem ter massas estelares, ser microcóspicos ou supermassivos.



Figura 2

A TRG nos mostra que o espaço — mais precisamente, o espaço-tempo — curva-se próximo a um corpo qualquer. É como se o espaço fosse um lençol de borracha e os corpos se “afundassem” nele. Acima vemos a curvatura do espaço em torno do Sol, de uma estrela anã branca, de uma estrela de nêutrons e de um gravex. Note que o gravex forma-se antes do “horizonte de gravitação extrema”, definido pela esfera cujo raio é o “raio de Schwarzschild” mostrado na figura (adaptação da figura 3 de Soares 2017).


Como vemos na figura 2, os gravex possuem estruturas espaços-temporais convencionais semelhantes às das anãs brancas e das estrelas de nêutrons. Os gravex de massas estelares podem ser chamados de estrelas extremas, ou simplesmente extremas, e representam os próximos objetos da sequência de objetos estelares de grande gravitação já conhecidos. Os BNs é que ocupam este lugar na visão da ciência moderna ortodoxa. Como dito acima, pode-se falar também de microgravex e gravex supermassivos.

Há duas questões importantes a serem respondidas com relação aos gravex.

A resposta à primeira pergunta pavimenta o terreno para a formulação da segunda. Estas questões são intelectualmente mais satisfatórias do que a convivência com o cenário desconhecido em que habita o BN, sempre a aguardar pelo advento de uma salvadora nova teoria de gravitação que resolva o problema da singularidade. O gravex evita a singularidade e pode — ou não — ser a resposta definitiva para a questão dos objetos de grande gravitação.

4. Considerações finais

A existência da SS denuncia de forma clara a necessidade de uma teoria de gravitação quântica (TGQ) e evidencia a precariedade das teorias clássicas de gravitação tais como a TRG e a gravitação newtoniana (ver uma discussão mais ampla sobre este aspecto em Soares 2017). Uma TGQ ampliaria o escopo da solução de Schwarzschild nos domínios limitados pela existência da singularidade.

As densidades médias das SSs ilustradas na figura 1 abrangem uma enorme faixa, desde 10−4 g/cm3 (SS supermassivo) até 1016 g/cm3 (SS estelar). Nesta faixa temos, em termos absolutos, valores muito pequenos e valores muito grandes. No entanto, é importante ressaltar que tais valores são extraordinariamente grandes quando comparados às densidades médias dos locais em que se supõe as SSs sejam encontradas. Por exemplo, as densidades médias em galáxias vão de ∼ 10−24 g/cm 3 nas regiões externas a ∼ 10−21 g/cm3 nas regiões nucleares. Uma SS estelar localizada nas regiões externas possui densidade média de cerca de 1040 vezes maior do que a densidade média de sua vizinhança, enquanto que uma SS supermassiva localizada no centro de uma galáxia possui densidade cerca de 1017 vezes maior do que a densidade galáctica nuclear. Esta é a razão pela qual as SSs são normalmente associadas a objetos de enormes densidades, ou seja, extremamente compactos, ao invés de a objetos de campos gravitacionais extremos, como é conceitualmente mais apropriado.

Os gravex supermassivos são semelhantes às “superestrelas” discutidas pelo físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) em seu livro Lectures on Gravitation, especialmente na Aula 14. As Aulas de Feynman foram ministradas no início da década de 1960, bem antes de se instalar a “febre” dos BNs. Feynman verificou que as superestrelas eram objetos relativistas instáveis. A propósito, vale a pena também ler os comentários dos físicos John Preskill e Kip Thorne apresentados no prefácio das Lectures. Este prefácio é por si só uma interessante aula de gravitação e está disponível aqui.

Como Einsteim em 1939, Feynman se preocupou com a questão da SS. Na p. 156, seção 11.4, ele apresenta o problema: “The metric eq.(11.3.6) [eq. 1 aqui] has a singularity at r=2m [r=2Gm/c2 em meu sistema de unidades]. In order to find out whether this is a physically troublesome or meaningful singularity, we must see whether this corresponds to a physical value of the measured radius from the origin of the coordinates (which is not the same as our coordinate r!) (…)” O resultado de sua análise é a permanência da singularidade só que agora em outro sistema de coordenadas. O que me impressiona nas palavras de Feynman acima são os termos “physically troublesome or meaningful singularity”, i.e., “singularidade fisicamente problemática ou relevante”. Uma singularidade “fisicamente problemática” deve ser descartada, isto é fácil de se entender. Mas o que é uma singularidade “fisicamente relevante”? Pode, para começo de conversa, uma singularidade ser “fisicamente relevante”? Os cálculos de Feynman — e o bom senso — parecem mostrar que não. Novamente, aparece aqui a necessidade de uma TGQ para se resolver o problema e eliminar a singularidade.

Na seção 11.5 das Aulas de Feynman temos uma curiosidade no domínio da “divagação científica” (cf. Soares 2017). Feynman apresenta uma discussão inicial sobre as extrapolações possíveis em torno das SSs, que naquela época eram, segundo ele, “called ‘wormholes’ by J.A. Wheeler” (“chamados ‘buracos de minhoca’ por J.A. Wheeler”). J.A. Wheeler é o já citado John Archibald Wheeler, que alguns anos depois viria a batizar a tal “especulação possível” de “buraco negro”, renunciando à denominação inicial de buraco de minhoca. Esta, posteriormente, viria a ser aplicada a um outro objeto extremamente esdrúxulo (ver seção 2.1 de Soares 2017). É importante lembrar que as Aulas foram ministradas nos anos 1962 e 1963 e que Wheeler inventou o buraco negro em 1967, como reza a história.


Agradecimentos – A figura 1 foi confeccionada em um dos computadores do Instituto Astronômico Kapteyn, Groningen, Holanda, sob os auspícios do Prof. Reynier Peletier. José Victor Neto, assinante e comentador frequente das mensagens de minha lista de cosmologia COSMOS, trouxe ao meu conhecimento o interessantíssimo livro de Feynman Lectures on Gravitation, que menciono neste artigo; certamente compartilho de seu entusiasmo por esta notável obra.


Atualização: 07nov18


Leia outros artigos em www.fisica.ufmg.br/dsoares/notices.htm.