O teste do desvio para o vermelho para a expansão do universo


Domingos Soares

22 de janeiro de 2018



Resumo

O teste do desvio para o vermelho é uma das maneiras de se investigar a realidade da expansão do universo. Apresento alguns detalhes do teste tendo por base a discussão feita por Allan Sandage em um artigo de 1962. O teste, irrealizável àquela época, torna-se possível com a tecnologia astronômica atual.



 

1. Introdução

A lei de Hubble ou, como prefiro, o efeito Hubble (cf. Soares 2009, Soares 2013) continua sendo matéria de discussão e de investigação. O artigo dos astrônomos e cosmólogos Georges Paturel (França), Pekka Teerikorpi (Finlândia) e Yurij Baryshev (Rússia) intitulado Hubble law: measure and interpretation mostra exatamente isto (o texto está disponível aqui). Comentarei apenas um aspecto que aparece no artigo e que trata da variação do desvio para o vermelho z de determinado objeto cósmico com o tempo t, matematicamente representado pela derivada dz/dt. A observação de dz/dt é um dos testes diretos do paradigma do universo em expansão espacial.

O astrônomo americano Allan Sandage (1926-2010), um dos “pais” da cosmologia relativista moderna, foi o primeiro, em 1962, a propor e a fazer estimativas numéricas de dz/dt em universos desacelerados. O universo de expansão acelerada de Fred Hoyle (1915-2001) e colaboradores (Teoria do Estado Estacionário, daqui para frente TEE) é também considerado na sua análise, mas com uma ressalva pois, segundo Sandage, a expansão acelerada requer uma força repulsiva e “no physical theory for the origin of this repulsive force is given” (pág. 324 de Sandage 1962), o que é irônico se considerarmos as “estrepolias” que são feitas atualmente para se criar a expansão acelerada que caracteriza o Modelo Padrão da Cosmologia.

O cálculo teórico de dz/dt, no contexto das equações dinâmicas do universo relativista em expansão, foi feito pelo matemático e cosmólogo britânico George McVittie (1904-1988) em um apêndice que segue o artigo de Sandage. A expressão obtida por McVittie é

dz/dt = (1 + z)Ho − H(z), (1)

onde H(z) é o parâmetro de Hubble no desvio para o vermelho z e Ho = H(z=0) (veja dedução alternativa da equação de McVittie em Cosmic dynamics in the era of Extremely Large Telescopes por J. Liske et al. 2008, pág. 1194). O valor absoluto de dz/dt será próximo de zero para fontes com pequenos desvios para o vermelho pois (1 + z)Ho ≅ H(z≅0). Isto implica em que as fontes ideais para o teste devem ter grandes desvios para o vermelho e terão pequena luminosidade pois estarão a grandes distâncias (efeito Hubble). Uma consequência importante é que as observações para a realização do teste exigirão um enorme tempo de observação, como veremos na seção 2.

Na prática Sandage calcula cdz/dt, onde c é a velocidade da luz no vácuo. Sandage utiliza a unidade (cm/s)/ano para cdz/dt. Ele faz estimativas do valor médio cΔz/Δt e usa a fórmula de McVittie para obter o valor instantâneo cdz/dt. As estimativas de Sandage para cdz/dt, em valores absolutos, são da ordem de 1 (cm/s)/ano, o que o levou a considerar que em 1962, com a tecnologia observacional da época (mesmo com o telescópio de 5 m de Monte Palomar), dever-se-ia esperar pelo menos 10 milhões de anos para se ter uma quantidade mensurável para z (cerca de 10.000.000 cm/s = 100 km/s). Acontece que muita coisa mudou nestes últimos 50-60 anos, especialmente no que se refere aos telescópios e aos espectrógrafos utilizados para a determinação de z. Além do mais, com o advento dos telescópios de muito grande abertura (os ELTs, “Extremely Large Telescopes”), torna-se possível a realização do teste.

2. O teste do desvio para o vermelho

Uma fonte de luz distante (uma galáxia, um aglomerado de galáxias, um quasar, etc.) emite radiação de comprimento de onda λ no instante cósmico t, a qual é observada no instante cósmico presente to > t com comprimento de onda λo sempre maior do que λ em um universo em expansão. Dizemos que a luz sofreu um “desvio para o vermelho” z = (λo − λ)/λ (o vermelho possui o maior comprimento de onda no espectro visível, o que inspirou a nomenclatura).

A expansão do universo é parametrizada por uma grandeza adimensional chamada fator de escala cósmico ou simplesmente fator de escala R(t). O fator de escala fornece a razão entre a escala espacial do universo em um instante t qualquer e a escala espacial em um instante to de referência, usualmente o instante presente. Os modelos cosmológicos são especificados pelas expressões matemáticas da função R(t). O desvio para o vermelho z de uma radiação emitida em t e detectada agora é obtido de:

1 + z = Ro/R = 1/R, (2)

onde Ro=R(t=to) ≡ 1. Tudo se passa como se a onda fosse “esticada” pela expansão espacial durante a sua viagem desde a emissão no passado até agora quando atinge o nosso telescópio. A eq. 2 é obtida a partir das equações de Friedmann para a cosmologia relativista (ver Sandage 1962, pág. 320, eqs. 3 e 5). A ideia do teste vem do fato de que se aguardarmos um certo intervalo de tempo Δt, observaremos uma variação Δz na luz emitida por determinada fonte distante pois o fator de escala R varia com o tempo (cf. eq. 2). Para os modelos clássicos com expansão desacelerada dz/dt será negativo e para modelos com expansão acelerada dz/dt será positivo e para um modelo sem aceleração ou desaceleração dz/dt = 0.

A figura 1 ilustra três modelos de expansão espacial, a saber, o modelo de Friedmann crítico, que possui expansão desacelerada, o modelo de expansão uniforme e o modelo de expansão acelerada da TEE. A concavidade da curva, dada matematicamente por d/dt(dR/dt), é positiva para o TEE (expansão acelerada), nula para a expansão uniforme e negativa (concavidade “para baixo”) para o modelo desacelerado de Friedmann. Como veremos a seguir, estes são os mesmos sinais algébricos de dz/dt.



Figura 1

Três modelos hipotéticos do universo com expansão. Note a concavidade de cada curva pois ela indica se o modelo é acelerado (TEE, concavidade para cima), sem aceleração (Uniforme, sem concavidade) e desacelerado (Friedmann, concavidade para baixo).


Utilizarei a equação de McVittie (eq. 1) para calcular os valores de dz/dt dos modelos hipotéticos do universo mostrados na figura 1.

Vemos nos exemplos acima que o sinal de dz/dt nos informa sobre o tipo de expansão, e que dz/dt = 0 não implica necessariamente ausência de expansão, mas a possibilidade de uma expansão uniforme. É importante salientar, nesta altura, que o resultado de qualquer teste de expansão do universo deve ser confrontado — e compatível — com outras restrições observacionais.

Sandage mostra em seu artigo de 1962 o cálculo de dz/dt para os três modelos de Friedmann (fechado, crítico e aberto) e para o modelo de expansão acelerada da TEE. Apresentarei a seguir, como exemplificação do método, o cálculo do valor de dz/dt para o modelo de Friedmann crítico que Sandage denomina “modelo euclidiano” — as coordenadas espaciais do modelo de Friedmann crítico formam um espaço plano ou euclidiano. A propósito, Sandage denomina o modelo de Friedmann fechado “modelo oscilatório” e o aberto “modelo hiperbólico”.

Primeiramente Sandage faz o cálculo do valor médio Δz/Δt para uma galáxia qualquer G que possui desvio para o vermelho z=0,4, quando observada no presente (em t=to). Ele supõe uma nova observação da mesma galáxia G no futuro em tF=2to. Com o auxílio das equações de Friedmann ele obtém o novo desvio para o vermelho z=0,2999. Obtém também o instante de emissão de luz pela galáxia G observada no presente (t1=to/1,6565) e o instante de emissão de luz quando a galáxia é observada no futuro (tx=tF/1,3495). Tudo isto está ilustrado na figura 2.



Figura 2

Esquema usado por Sandage (1962) para o cálculo de Δz/Δt para o modelo de Friedmann crítico. A galáxia G é observada no presente (t=to) com z=0,4 e emitiu luz em t=t1 no passado. Supõe-se nova observação de G no futuro em t=tF=2to. A galáxia G passa a ter z=0,2999 e emitiu luz em t=tx (a figura é uma adaptação da figura 2 de Sandage 1962). Sandage usa as equações de Friedmann para obter to/t1=1,6565 e tF/tx=1,3495. A linha grossa do presente começa em t1 e termina em to; a do futuro começa em tx e termina em tF.


Sandage adota a constante de Hubble H(t=to) ≡ Ho = 75 (km/s)/Mpc. Este valor fornece to = 2/(3Ho) = 9 bilhões de anos, de acordo com o modelo de Friedmann crítico. Temos então, para este modelo, cΔz/Δt = 3×1010 cm/s (0,2999 − 0,4)/(18 bilhões de anos − 9 bilhões de anos) = − 0,34 (cm/s)/ano = − 3,4×10−6 (km/s)/ano. Sandage usa em seguida a equação de McVittie para obter o valor instantâneo de cdz/dt, que vale cdz/dt = c(1 + z)Ho − H(z), de acordo com a eq. 1. Como se quer cdz/dt em z=0,4 (ver a figura), temos H(z=0,4) = Ho(to/t1), já que no modelo de Friedmann crítico H(t) = 2/(3t), ou seja, o parâmetro de Hubble H(t) é inversamente propocional ao tempo cósmico t. Lembrando que to/t1 = 1,6565, teremos, portanto, cdz/dt = 3×1010 cm/s (1+0,4)75 (km/s)/Mpc − 75 (km/s)/Mpc(1,6565) = − 5,8×1011 cm/s (km/s)/Mpc = − 5,9×10−6 (km/s)/ano (1 Mpc = 3,1×1019 km e 1 ano = 3,15×107 s). Sandage conclui então que deveremos esperar pelo menos 107 anos para termos um valor de cdz/dt razoável (≈ 100 km/s) para a tecnologia astronômica da época.

Os ELTs atuais possuem abertura de ≈ 40 m e possibilitarão a obtenção observacional de cdz/dt. O valor obtido acima por Sandage e McVittie de cdz/dt = − 5,9×10−6 (km/s)/ano ≈ 1 (cm/s)/ano, inobservável na década de 1960, torna-se observável agora (cf. Paturel, Teerikorpi e Baryshev 2017, pág. 16, citado na seção 1). Liske et al. 2008 (ver seção 1) são mais específicos. De acordo com eles (pág. 1211), um ELT de 42 m de abertura, observando uma amostra de 20 quasares, com z ≳ 2,5, durante 4.000 horas, poderá resultar numa precisão de 2 cm/s, o que permitiria a determinação inequívoca de cdz/dt, seja ele positivo, negativo ou nulo, em observações separadas por 20 anos — não mais os 10 milhões de anos de Sandage 1962. (O desvio para o vermelho limite z = 2,5 corresponde a uma velocidade de expansão de 90% da velocidade da luz, de acordo com o modelo de Friedmann crítico, como se vê na figura 2 de Soares 2009.)

3. Considerações finais

3.1. Observação de 4.000 horas

Tempos de exposição longos não são estranhos à história da astronomia, mas nada ainda desta magnitude. Observar um objeto do solo por 4.000 horas significa observar durante 800 noites, considerando a média de 5 horas/noite, o que é razoável em um bom sítio astronômico. Isto representa um projeto observacional de pouco mais de 2 anos. Depois deve-se aguardar 20 anos e repetir o processo. De novo, nada mal em vista dos 10 milhões de anos de Sandage.

Milton L. Humason (1891-1972), o assistente noturno de Edwin P. Hubble (1889-1953), observou as galáxias com os maiores desvios para o vermelho de sua época. Uma de suas observações pioneiras foi feita no final da década de 1920 no telescópio de Monte Wilson, Califórnia, Estados Unidos, que tem 2,5 m de abertura e era na ocasião o maior telescópio do mundo (veja Hubble e o telescópio). Humason observou a mesma galáxia (a galáxia elíptica NGC 7619) por um total de 33 horas durante várias noites. A mesma placa fotográfica, o detector da época, era recolocado no espectrógrafo a cada noite de observação para o registro de mais fótons até se obter um espectro mensurável (ver “The man who measured the cosmos”, Ron L. Voller, revista Astronomy, Janeiro 2012, pág. 52).

Recentemente — no final da década de 1990 e início dos anos 2000 — o Telescópio Espacial Hubble observou algumas regiões selecionadas do céu por tempos de exposição de 10-12 dias para obter as imagens das galáxias mais distantes do universo (cf. Soares 2008).

Mas a tarefa das 4.000 horas não será tão árdua, pois hoje em dia com os processos de automação em plena operação na astronomia, a observação consecutiva de um mesmo objeto por centenas de noites será um acontecimento relativamente trivial, com a intervenção humana ocasional.

3.2. Universo sem expansão

O valor observacional de dz/dt pode ser nulo e não excluir a expansão, como vimos acima para o modelo de expansão uniforme [H(t) = 1/t]. É claro que este modelo não é apropriado pois como a idade do universo vale neste caso to = 1/Ho, o modelo cai no dilema da idade (Soares 2015) se considerarmos o valor medido atualmente de Ho.

É importante salientar que o teste do desvio para o vermelho descrito acima é baseado no paradigma do universo em expansão, de acordo com as equações relativistas de Friedmann (ver Viglioni e Soares 2011). Na eventualidade plausível de existirmos em um universo sem expansão do espaço (cf. discussão em Soares 2017, Universo em expansão… ou não?), o resultado observacional do teste deverá ser interpretado à luz de outros princípios físicos, ainda por serem explicitados. Em outras palavras, valores não nulos de dz/dt, fora do paradigma da expansão, podem fornecer pistas para a descoberta do mecanismo físico por trás do efeito Hubble (cf. seção 3 de Soares 2009).

3.3. Sandage

Os astrônomos norte-americanos Allan Sandage e Halton Arp (1927-2013; ver, por exemplo, Arp's Indomitable Universe em Soares, Neves e Assis 2017) foram os mais notáveis estudantes e discípulos de Hubble, cada um com suas peculiaridades e contradições científicas. Sandage 1962 é o segundo artigo de Sandage sobre o qual eu me debruço com mais atenção e que resultou no presente texto. O primeiro foi um artigo de 2001, um trabalho de colaboração com L.M. Lubin, no qual eles aplicam um outro teste da expansão, a saber, o teste do brilho superficial de galáxias. O estudo que fiz então resultou no artigo intitulado Sandage versus Hubble on the reality of the expanding universe (Soares 2006), em que eu concluo pela falha de Sandage em demonstrar a realidade da expansão, apesar de sua conclusão em contrário. Neste artigo eu apresento uma atitude bastante crítica, e mesmo dura, a respeito do trabalho de Sandage, que considerei tendencioso e com recursos algumas vezes a argumentos de autoridade. Já no presente estudo do teste do desvio para o vermelho eu reconheço um Sandage bastante preciso e rigoroso em seu tratamento do teste e com uma genuína intenção de se investigar a realidade dos modelos relativistas do universo.

A razão para a diferença nas abordagens de Soares 2006 e de agora, relativamente à visão sobre o cientista Sandage, pode ser exatamente esta: no primeiro Sandage realiza o teste de brilho superficial de maneira forçada de modo a concluir pela realidade da expansão e no segundo, por ser impossível a realização do teste observacional com a tecnologia astronômica da época, ele se concentra na proposição teórica do teste e o faz com bastante competência.


Agradecimento – As figuras foram confeccionadas em um dos computadores do Instituto Astronômico Kapteyn, Groningen, Holanda, sob os auspícios do Prof. Reynier Peletier.



Atualização: 02mar18


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