22 de janeiro de 2018
O teste do desvio para o vermelho é uma das maneiras de se investigar a realidade da expansão do universo. Apresento alguns detalhes do teste tendo por base a discussão feita por Allan Sandage em um artigo de 1962. O teste, irrealizável àquela época, torna-se possível com a tecnologia astronômica atual.
O astrônomo americano Allan Sandage (1926-2010), um dos “pais” da cosmologia relativista moderna, foi o primeiro, em 1962, a propor e a fazer estimativas numéricas de dz/dt em universos desacelerados. O universo de expansão acelerada de Fred Hoyle (1915-2001) e colaboradores (Teoria do Estado Estacionário, daqui para frente TEE) é também considerado na sua análise, mas com uma ressalva pois, segundo Sandage, a expansão acelerada requer uma força repulsiva e “no physical theory for the origin of this repulsive force is given” (pág. 324 de Sandage 1962), o que é irônico se considerarmos as “estrepolias” que são feitas atualmente para se criar a expansão acelerada que caracteriza o Modelo Padrão da Cosmologia.
O cálculo teórico de dz/dt, no contexto das equações dinâmicas do universo relativista em expansão, foi
feito pelo matemático e cosmólogo britânico George McVittie (1904-1988) em
um
apêndice que segue o artigo de Sandage. A expressão obtida por McVittie é
Na prática Sandage calcula cdz/dt, onde c é a velocidade da luz no vácuo. Sandage utiliza a unidade (cm/s)/ano para cdz/dt. Ele faz estimativas do valor médio cΔz/Δt e usa a fórmula de McVittie para obter o valor instantâneo cdz/dt. As estimativas de Sandage para cdz/dt, em valores absolutos, são da ordem de 1 (cm/s)/ano, o que o levou a considerar que em 1962, com a tecnologia observacional da época (mesmo com o telescópio de 5 m de Monte Palomar), dever-se-ia esperar pelo menos 10 milhões de anos para se ter uma quantidade mensurável para z (cerca de 10.000.000 cm/s = 100 km/s). Acontece que muita coisa mudou nestes últimos 50-60 anos, especialmente no que se refere aos telescópios e aos espectrógrafos utilizados para a determinação de z. Além do mais, com o advento dos telescópios de muito grande abertura (os ELTs, “Extremely Large Telescopes”), torna-se possível a realização do teste.
A expansão do universo é parametrizada por uma grandeza adimensional chamada fator de escala cósmico ou simplesmente fator de escala R(t). O fator de escala fornece a razão entre a escala espacial do universo em um instante t qualquer e a escala espacial em um instante to de referência, usualmente o instante presente. Os modelos cosmológicos são especificados pelas expressões matemáticas da função R(t). O desvio para o vermelho z de uma radiação emitida em t e detectada agora é obtido de:
onde Ro=R(t=to) ≡ 1. Tudo se passa como se a onda fosse “esticada” pela expansão espacial durante a sua viagem desde a emissão no passado até agora quando atinge o nosso telescópio. A eq. 2 é obtida a partir das equações de Friedmann para a cosmologia relativista (ver Sandage 1962, pág. 320, eqs. 3 e 5). A ideia do teste vem do fato de que se aguardarmos um certo intervalo de tempo Δt, observaremos uma variação Δz na luz emitida por determinada fonte distante pois o fator de escala R varia com o tempo (cf. eq. 2). Para os modelos clássicos com expansão desacelerada dz/dt será negativo e para modelos com expansão acelerada dz/dt será positivo e para um modelo sem aceleração ou desaceleração dz/dt = 0.
A figura 1 ilustra três modelos de expansão espacial, a saber, o modelo de Friedmann crítico, que possui expansão desacelerada, o modelo de expansão uniforme e o modelo de expansão acelerada da TEE. A concavidade da curva, dada matematicamente por d/dt(dR/dt), é positiva para o TEE (expansão acelerada), nula para a expansão uniforme e negativa (concavidade “para baixo”) para o modelo desacelerado de Friedmann. Como veremos a seguir, estes são os mesmos sinais algébricos de dz/dt.
Utilizarei a equação de McVittie (eq. 1) para calcular os valores de dz/dt dos modelos hipotéticos do universo mostrados na figura 1.
Sandage mostra em seu artigo de 1962 o cálculo de dz/dt para os três modelos de Friedmann (fechado, crítico e aberto) e para o modelo de expansão acelerada da TEE. Apresentarei a seguir, como exemplificação do método, o cálculo do valor de dz/dt para o modelo de Friedmann crítico que Sandage denomina “modelo euclidiano” — as coordenadas espaciais do modelo de Friedmann crítico formam um espaço plano ou euclidiano. A propósito, Sandage denomina o modelo de Friedmann fechado “modelo oscilatório” e o aberto “modelo hiperbólico”.
Primeiramente Sandage faz o cálculo do valor médio Δz/Δt para uma galáxia qualquer G que possui desvio para o vermelho z=0,4, quando observada no presente (em t=to). Ele supõe uma nova observação da mesma galáxia G no futuro em tF=2to. Com o auxílio das equações de Friedmann ele obtém o novo desvio para o vermelho z=0,2999. Obtém também o instante de emissão de luz pela galáxia G observada no presente (t1=to/1,6565) e o instante de emissão de luz quando a galáxia é observada no futuro (tx=tF/1,3495). Tudo isto está ilustrado na figura 2.
Sandage adota a constante de Hubble H(t=to) ≡ Ho = 75 (km/s)/Mpc. Este valor fornece to = 2/(3Ho) = 9 bilhões de anos, de acordo com o modelo de Friedmann crítico. Temos então, para este modelo, cΔz/Δt = 3×1010 cm/s (0,2999 − 0,4)/(18 bilhões de anos − 9 bilhões de anos) = − 0,34 (cm/s)/ano = − 3,4×10−6 (km/s)/ano. Sandage usa em seguida a equação de McVittie para obter o valor instantâneo de cdz/dt, que vale cdz/dt = c(1 + z)Ho − H(z), de acordo com a eq. 1. Como se quer cdz/dt em z=0,4 (ver a figura), temos H(z=0,4) = Ho(to/t1), já que no modelo de Friedmann crítico H(t) = 2/(3t), ou seja, o parâmetro de Hubble H(t) é inversamente propocional ao tempo cósmico t. Lembrando que to/t1 = 1,6565, teremos, portanto, cdz/dt = 3×1010 cm/s (1+0,4)75 (km/s)/Mpc − 75 (km/s)/Mpc(1,6565) = − 5,8×1011 cm/s (km/s)/Mpc = − 5,9×10−6 (km/s)/ano (1 Mpc = 3,1×1019 km e 1 ano = 3,15×107 s). Sandage conclui então que deveremos esperar pelo menos 107 anos para termos um valor de cdz/dt razoável (≈ 100 km/s) para a tecnologia astronômica da época.
Os ELTs atuais possuem abertura de ≈ 40 m e possibilitarão a obtenção observacional de cdz/dt. O valor obtido acima por Sandage e McVittie de cdz/dt = − 5,9×10−6 (km/s)/ano ≈ 1 (cm/s)/ano, inobservável na década de 1960, torna-se observável agora (cf. Paturel, Teerikorpi e Baryshev 2017, pág. 16, citado na seção 1). Liske et al. 2008 (ver seção 1) são mais específicos. De acordo com eles (pág. 1211), um ELT de 42 m de abertura, observando uma amostra de 20 quasares, com z ≳ 2,5, durante 4.000 horas, poderá resultar numa precisão de 2 cm/s, o que permitiria a determinação inequívoca de cdz/dt, seja ele positivo, negativo ou nulo, em observações separadas por 20 anos — não mais os 10 milhões de anos de Sandage 1962. (O desvio para o vermelho limite z = 2,5 corresponde a uma velocidade de expansão de 90% da velocidade da luz, de acordo com o modelo de Friedmann crítico, como se vê na figura 2 de Soares 2009.)
Milton L. Humason (1891-1972), o assistente noturno de Edwin P. Hubble (1889-1953), observou as galáxias com os maiores desvios para o vermelho de sua época. Uma de suas observações pioneiras foi feita no final da década de 1920 no telescópio de Monte Wilson, Califórnia, Estados Unidos, que tem 2,5 m de abertura e era na ocasião o maior telescópio do mundo (veja Hubble e o telescópio). Humason observou a mesma galáxia (a galáxia elíptica NGC 7619) por um total de 33 horas durante várias noites. A mesma placa fotográfica, o detector da época, era recolocado no espectrógrafo a cada noite de observação para o registro de mais fótons até se obter um espectro mensurável (ver “The man who measured the cosmos”, Ron L. Voller, revista Astronomy, Janeiro 2012, pág. 52).
Recentemente — no final da década de 1990 e início dos anos 2000 — o Telescópio Espacial Hubble observou algumas regiões selecionadas do céu por tempos de exposição de 10-12 dias para obter as imagens das galáxias mais distantes do universo (cf. Soares 2008).
Mas a tarefa das 4.000 horas não será tão árdua, pois hoje em dia com os processos de automação em plena operação na astronomia, a observação consecutiva de um mesmo objeto por centenas de noites será um acontecimento relativamente trivial, com a intervenção humana ocasional.
É importante salientar que o teste do desvio para o vermelho descrito acima é baseado no paradigma do universo em expansão, de acordo com as equações relativistas de Friedmann (ver Viglioni e Soares 2011). Na eventualidade plausível de existirmos em um universo sem expansão do espaço (cf. discussão em Soares 2017, Universo em expansão… ou não?), o resultado observacional do teste deverá ser interpretado à luz de outros princípios físicos, ainda por serem explicitados. Em outras palavras, valores não nulos de dz/dt, fora do paradigma da expansão, podem fornecer pistas para a descoberta do mecanismo físico por trás do efeito Hubble (cf. seção 3 de Soares 2009).
A razão para a diferença nas abordagens de Soares 2006 e de agora, relativamente à visão sobre o cientista Sandage, pode ser exatamente esta: no primeiro Sandage realiza o teste de brilho superficial de maneira forçada de modo a concluir pela realidade da expansão e no segundo, por ser impossível a realização do teste observacional com a tecnologia astronômica da época, ele se concentra na proposição teórica do teste e o faz com bastante competência.
Agradecimento – As figuras foram confeccionadas em um dos
computadores do Instituto Astronômico Kapteyn, Groningen, Holanda, sob os auspícios
do Prof. Reynier Peletier.