O carneiro hidráulico como um análogo mecânico do coração

(The hydraulic ram as a mechanical analogue of the heart)


Domingos Soares

Departamento de Física, Universidade Federal de Minas Gerais
C.P. 702, 30123-970, Belo Horizonte – Brazil
E-mail: dsoares@fisica.ufmg.br

15 de fevereiro de 2011


Resumo
Mostra-se que o carneiro hidráulico, ou bomba carneiro, é um análogo mecânico do mecanismo físico que opera no coração humano para o bombeamento do sangue. Desta forma, o fluxo sanguíneo é identificado como um processo auto-regulado e o coração como uma associação em série de duas bombas carneiro que impulsionam o fluxo sanguíneo no sistema circulatório humano.

Abstract
The hydraulic ram, or ram pump, is shown to be a mechanical analogue of the physical mechanism that operates in the human heart for blood pumping. Accordingly, the blood flux is identified as a self-regulated process and the heart as an association of two ram pumps in series driving the blood flux in the human circulatory system.



1. Introdução

Por que bate o coração? Mais precisamente, será o cérebro diretamente responsável pelo pulsar ininterrupto do sistema circulatório humano? Estas perguntas foram as motivações iniciais para o estudo aqui apresentado.

O nível de biologia e fisiologia do coração e do sistema circulatório humano é aquele encontrado em páginas eletrônicas de professores do ensino médio e de divulgação científica. Este nível será suficiente para a tese que discutirei aqui, qual seja, a de que o sistema circulatório humano é um sistema hidráulico auto-regulado e o coração é uma bomba que funciona de forma análoga ao carneiro hidráulico.

O carneiro hidráulico é um dispositivo de bombeamento de água que utiliza como fonte de energia a própria energia cinética do fluxo de água a ser bombeado, e que é capaz de bombear água para uma altura maior do que a altura da queda de água que fornece a energia para o seu funcionamento.

Na seção 2 apresentarei o carneiro hidráulico com mais detalhes; na seção 3 farei uma breve descrição do sistema circulatório humano e de sua bomba propulsora, o coração. O cenário está preparado, então, para a defesa da tese exposta acima, a saber, a analogia entre o bombeamento hidráulico por meio de uma bomba carneiro e o bombeamento sanguíneo por meio do coração. Isto é feito na seção 4. Finalizo com algumas considerações na seção 5.

2. A bomba carneiro

Bomba carneiro, bomba de aríete, carneiro hidráulico, são todos nomes de um mesmo dispositivo mecânico utilizado para o bombeamento de água. O Prof. Luiz Ferraz Netto apresenta em [1] uma discussão bastante clara e rica de detalhes a respeito do carneiro hidráulico. Reproduzo na Fig. 1 o seu esquema didático da bomba carneiro. Os interessados em mais detalhes devem consultar a referência mencionada. No final do artigo, o Prof. Luiz Ferraz Netto reproduz uma reportagem publicada na revista Globo Rural, a qual apresenta detalhes adicionais sobre a utilização do carneiro hidráulico [2].


Figura 1 — O carneiro hidráulico é um dispositivo mecânico caracterizado por duas válvulas, a válvula de entrega e a válvula de desperdício (cf. [1]).


Resumidamente, o seu funcionamento ocorre da seguinte forma.

O fluxo da água proveniente do manancial de água (veja a Fig. 1) provoca o fechamento da válvula de desperdício e gera um choque hidráulico — o chamado golpe de aríete — que força a abertura da válvula de entrega pois a água não tem outro lugar por onde fluir. A água é assim forçada para a garrafa de compressão do ar e daí, através do tubo de saída, para o reservatório. Este fluxo, em direção a um nível de energia potencial gravitacional maior, desacelera, por sofrer uma força contrária ao seu movimento, e eventualmente reverte o seu sentido de fluxo, fechando a válvula de entrega. Quase que simultaneamente, o fluxo no tubo de impulso vai ao repouso e a válvula de desperdício reabre, permitindo que o fluxo por ela se reinicie. Logo em seguida, ocorre novo fechamento da válvula e o ciclo se repete.

A garrafa para compressão do ar merece uma atenção maior. A compressão do ar amortece o golpe de aríete e o ar comprimido melhora também a eficiência do bombeamento, permitindo um fluxo mais estável através do tubo de saída. É importante ressaltar — especialmente em vista da analogia a ser feita na seção 4 — que, em princípio, o carneiro poderia funcionar sem a garrafa. Entretanto, a eficiência do bombeamento seria reduzida e o dispositivo submetido a sobrepressões, que poderiam encurtar a sua vida útil (ver seção 2.1 de [3]).

Uma visualização esclarecedora do mecanismo de funcionamento do carneiro hidráulico é apresentada na animação em [4]. Carneiros hidráulicos reais podem ser vistos nos filmes em [5] e [6]. A Fig. 2 mostra a fotografia de um carneiro comercial.


Figura 2 — Fotografia de um carneiro hidráulico comercial. Sobressai-se a ``garrafa'' para compressão do ar que, neste modelo, possui aproximadamente 40 cm de altura. À direita, ressalta-se a válvula de desperdício (veja um equipamento semelhante a este, em operação, no filme em [5]).


3. O coração e o sistema circulatório humano

O sistema circulatório humano é constituído por ``tubos'' — as veias —, que conduzem um fluido — o sangue — por todo o corpo humano, num circuito hidráulico. O fluido está submetido a diferenças de pressão ao longo deste circuito e deve vencer tais diferenças de pressão para completá-lo. Desta forma, o sistema circulatório necessita de uma bomba hidráulica, neste caso, biológica. Esta bomba é o coração que, como se sabe, é capaz de funcionar ininterruptamente por dezenas de anos. O sistema circulatório humano e o coração, em particular, estão ilustrados na Fig. 3. A estrutura central do sistema circulatório é a bomba que impulsiona o sistema, ou seja, o coração. O coração possui duas secções, cada uma delas constituídas por duas cavidades, a saber, uma aurícula — também chamada átrio — e um ventrículo.

O sangue se comporta, no sistema circulatório, como um fluido incompressível. As paredes musculares das cavidades do coração exercem forças elásticas sobre ele, que são quase que instantaneamente transmitidas por todo o fluido.

Vamos descrever a circulação sanguínea começando pela secção direita do coração.

O sangue, originário dos órgãos e tecidos do corpo humano, entra pela aurícula direita repleto de gás carbônico (CO2). Aí acumula-se e força a abertura de uma válvula, chamada tricúspide. Entra no ventrículo direito, enchendo-o e forçando a expansão de suas paredes musculares. Estas paredes exercem então uma força elástica contrária ao movimento do sangue, forçando o fechamento imediato da válvula tricúspide e o bombeamento do sangue pela única saída agora disponível, a válvula pulmonar. O sangue sai então em direção aos pulmões para deixar o CO2 e receber oxigênio (O2). A válvula pulmonar tem um sentido de fechamento contrário ao da válvula tricúspide. Em virtude da vazão do sangue pela válvula pulmonar ocorre um relaxamento das paredes do ventrículo, cessa o bombeamento do sangue e ele tende a refluir pela válvula pulmonar. Mas esta se fecha e, ao mesmo tempo, abre-se a válvula tricúspide, reiniciando-se, desta maneira, o ciclo.


Figura 3 — O coração (detalhado à direita) é a estrutura central no sistema circulatório humano. O lado direito do coração possui duas cavidades, a aurícula e o ventrículo, e duas cavidades semelhantes no lado esquerdo (veja [7], [8] e [9]). O sangue entra e sai no lado direito e faz o mesmo no lado esquerdo. A veia mostrada, na figura à esquerda, é a cava inferior, que chega ao coração, pela aurícula direita, com sangue rico em gás carbônico. A artéria mostrada, na mesma figura, é a aorta, que sai do coração, pelo ventrículo esquerdo, com sangue rico em oxigênio. A aurícula também recebe o nome de átrio, como se vê na figura à direita, na qual é importante notar, também, as quatro válvulas cardíacas [10].


No lado esquerdo ocorre uma atividade semelhante em quase todos os aspectos, com uma diferença importante: o sangue chega na aurícula esquerda, vindo dos pulmões, rico em O2, passa ao ventrículo pela válvula agora denominada mitral, e é bombeado para os órgãos e tecidos do corpo através da válvula agora denominada aórtica.

Uma veia pela qual o sangue sai do coração é chamada de artéria. O sangue sai, portanto, do ventrículo direito pela artéria denominada pulmonar e sai do ventrículo esquerdo pela artéria aórtica ou simplesmente aorta.

Deve-se observar que o sangue corre por um percurso fechado: vem dos órgãos e tecidos, entra pela aurícula direita, passa pelo ventrículo direito e vai aos pulmões, donde retorna ao coração pela aurícula esquerda, indo para o ventrículo esquerdo, donde sai para os órgãos e tecidos do corpo, completando o circuito. A Fig. 4 mostra um esquema do sistema circulatório humano onde se evidencia o fato deste ser um percurso fechado. As duas secções do coração colaboram no bombeamento do sangue, isto é, são duas bombas hidráulicas que atuam em série. O esquema é feito com o objetivo de ressaltar o carácter unidirecional — no sentido horário — da circulação sanguínea.


Figura 4 — Representação esquemática do sistema circulatório humano. Note que o sangue descreve um percurso fechado. O sangue entra no coração, pela aurícula direita (AD), vindo dos órgãos e tecidos, passa pelos pulmões e sai do coração, pelo ventrículo esquerdo (VE), indo para os órgãos e tecidos. Entre a AD e o ventrículo direito (VD) existe uma válvula. Na saída do VD existe outra válvula. Há uma simetria perfeita com o lado esquerdo do coração: uma válvula entre a aurícula esquerda (AE) e o VE e uma válvula na saída do VE. As quatro válvulas aparecem também — com seus nomes específicos — no lado direito da Fig. 3. Veja a versão animada de um esquema semelhante em [11].


4. O coração como uma associação de bombas carneiro

O coração humano é uma associação em série de duas bombas hidráulicas. Cada uma delas funciona de forma semelhante a uma bomba carneiro modificada, a saber, sem a garrafa de compressão de ar (ver Fig. 1).

A válvula de desperdício no carneiro hidráulico é análoga às válvulas tricúspide (bomba do lado direito) e mitral (bomba do lado esquerdo). A válvula de entrega no carneiro é análoga às válvulas pulmonar (lado direito) e aórtica (lado esquerdo).

O fechamento da válvula de desperdício provoca a transformação da energia cinética da água, que cai do manancial, em energia potencial gravitacional, proporcionando a elevação de uma parcela da mesma a uma altura maior que a do manancial. No coração, no lado direito, o fechamento da válvula tricúspide (mitral, no lado esquerdo) provoca a transformação da energia potencial elástica armazenada nas paredes do ventrículo direito (e do esquerdo) em energia cinética do sangue, resultando em seu movimento para os pulmões, no lado direito, e para os órgãos e tecidos, no lado esquerdo. Note-se que as paredes dos ventrículos se expandem por causa da chegada do sangue, impulsionado pela diferença de pressão entre as aurículas e os ventrículos.

O único elemento faltante na analogia é a garrafa de compressão do ar, que como vimos na Seção 2, aumenta a eficiência do carneiro, mas não é indispensável para o seu funcionamento.

O martelar contínuo do carneiro hidráulico, que ocorre no fechamento ritmado da válvula de desperdício e da válvula de entrega, é análogo ao batimento cardíaco, causado pelo fechamento das válvulas tricúspide e mitral e das válvulas pulmonar e aórtica (veja as animações em [9], as quais ilustram de forma dinâmica o sistema circulatório humano). Nas duas situações temos o fenômeno denominado golpe de aríete, isto é, a interrupção brusca do fluxo sanguíneo, num caso, e do fluxo da água, no outro. Note-se que temos, tanto no coração quanto no carneiro, batidas duplas ritmadas. No caso do coração a batida dupla é bem nítida, sendo uma delas mais forte. Qualquer pessoa pode verificar este fato auscultando o coração. Já no caso do carneiro, a batida resultante do fechamento da válvula de desperdício é bastante evidente — resultando no martelar característico —, mas a batida seguinte é mais fraca e sutil, como pode ser verificado no filme em [5].

Ambos os sistemas — do carneiro e do coração — são auto-regulados, no sentido de que basta um estímulo inicial para colocá-los em operação. No carneiro hidráulico, o impulso inicial é proporcionado pelo fluxo de água em direção à cavidade onde se localiza a válvula de desperdício. No coração, o impulso inicial pode ser proporcionado, por exemplo, pela compressão mecânica exercida sobre as paredes musculares das cavidades cardíacas, em outras palavras, por um massagear vigoroso.

5. Considerações finais

O sistema circulatório humano é um sistema auto-regulado pelas diferenças de pressão existentes nas cavidades direita e esquerda do coração e pelas tremendas energias potenciais elásticas armazenadas nas paredes das cavidades cardíacas, especialmente dos ventrículos, e que são utilizadas de forma ritmada através da atuação de um sistema de válvulas. O sistema de válvulas cardíacas é inteiramente análogo ao sistema de válvulas que atua no carneiro hidráulico, o qual é também um sistema auto-regulado. Todos estes fatores apontam para uma analogia extremamente esclarecedora entre uma bomba carneiro e um sistema aurícula-ventrículo-válvulas, sistema este presente em dose dupla no coração.

É interessante observar que o funcionamento do sistema circulatório não depende, em princípio, do perfeito funcionamento do cérebro. Exagerando, este pode até faltar, que o ciclo cardíaco continuará funcionando — pelo menos por um determinado período de tempo —, já que trata-se de um sistema hidráulico auto-regulado.

Como vimos, o coração é constituído por duas estruturas semelhantes a carneiros hidráulicos sem as garrafas de compressão. A este propósito — e ultrapassando o escopo do presente trabalho — certos estados patológicos do coração, relacionados à sua incapacidade de um perfeito bombeamento do fluxo sanguíneo, poderiam ser remediados. A implantação de próteses, na forma de ``garrafas'' de compressão de ar1, nas dimensões apropriadas, logo acima das válvulas pulmonar e aórtica poderia aumentar a eficiência do bombeamento, exatamente como ocorre no carneiro. E, aí sim, teríamos uma analogia perfeita entre o coração e o carneiro hidráulico.

Curiosamente, os carneiros hidráulicos comerciais são, quase sempre, pintados na cor vermelha bastante viva, como aquele mostrado na Fig. 2 (ver [5]), quase como que reivindicando a analogia que aqui acaba de ser feita.



Agradecimento — A minha esposa Lu, pelos comentários e discussões proveitosas sobre vários aspectos deste trabalho.


Referências

[1] L.F. Netto, Golpe de aríete (Carneiro hidráulico – Didático),
www.feiradeciencias.com.br/sala07/07_57.asp

[2] L.R. Toledo, Carneiro hidráulico – Resgate Secular, Globo Rural, outubro 1997, pp. 29-31.

[3] Wikipedia, Hydraulic ram,
en.wikipedia.org/wiki/Hydraulic_ram

[4] H. Schou, Hydraulic ram animation,
schou.dk/animation/

[5] YouTube, Carneiro Hidráulico Ariete,
www.youtube.com/watch?v=bCDqaMqe2aE

[6] YouTube, El ariete hidraulico video informativo,
www.youtube.com/watch?v=HrVDdxjiT5s

[7] Portfólio digital, Sistema circulatório,
biofis.hd1.com.br/SistCirculatorio.html

[8] YouTube, Heart anatomy,
www.youtube.com/watch?v=H04d3rJCLCE

[9] YouTube, Sistema circulatório,
www.youtube.com/watch?v=N3n_l4qOEJ0

[10] Nurses Care, Sopro no coração,
nurseskare.blogspot.com/2010/04/sopro-no-coracao.html

[11] YouTube, Cardio cycle animation for visual learners,
www.youtube.com/watch?v=_YuX7CtClyg

 

1 Ou, alternativamente, cavidades sintéticas elásticas extras. Volta.



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Domingos Sávio de Lima Soares
15fev2011