04 de dezembro de 2020
As observações da rotação da galáxia espiral NGC 3198 são explicadas através do ajuste de um modelo teórico baseado na gravitação newtoniana. O ajuste só é possível se houver uma componente de “matéria escura” — i.e., matéria não radiante de natureza desconhecida — em sua distribuição de massa. O ajuste é aplicado à chamada “curva de rotação” da galáxia, a qual consiste na variação da velocidade de rotação de um traçador com a distância até o centro galáctico. O traçador utilizado na presente discussão é o hidrogênio neutro, detectado em radiofrequência no comprimento de onda de 21 cm e correspondente frequência de 1420 MHz.
A discussão será baseada no trabalho sobre NGC 3198 intitulado Distribution of dark matter in the spiral galaxy NGC 3198, de autoria de T. S. van Albada, J. N. Bahcall, K. Begeman e R. Sancisi e publicado em 1985. Este trabalho será referido a seguir pela sigla “vABBS”.
O HI é o que se chama de “traçador” galáctico, ou seja, um corpo de prova para se investigar a galáxia. Outros traçadores são as estrelas, as nuvens de gases ionizados, os aglomerados abertos e globulares, etc. Os traçadores são utilizados para se estudar um fenômeno específico. Em nosso caso, utilizaremos as observações de HI para se determinar a chamada “curva de rotação” da galáxia NGC 3198. O gás emite ondas de rádio com comprimentos de onda deslocados para o vermelho ou para o azul, em virtude da rotação da galáxia. Isto está ilustrado na figura 1, onde aparecem as observações de hidrogênio atômico codificadas em cores (mais detalhes em Soares 2012).
As observações de hidrogênio atômico podem ser feitas muito além dos limites visíveis das galáxias, o que se constitui numa ferramenta muito útil para o estudo da distribuição de massa das galáxias. No caso de NGC 3198, o HI se distribui até um raio de cerca de 3 vezes maior do que o raio da parte visível da galáxia, como veremos na próxima seção.
O raio da galáxia está assinalado pela seta (RG = 4,2' = 11,3 kpc). A conversão do tamanho aparente em minutos de arco (') para o tamanho físico em kiloparsec (kpc) foi feita utilizando-se a distância da galáxia apresentada por vABBS (9,2 Mpc). É importante notar que a galáxia é dominada pelo disco, o que quer dizer que o seu bojo e a sua barra são muito pequenos e podem ser desprezados na modelagem da massa da galáxia.
As observações de hidrogênio atômico (HI) foram obtidas no radiotelescópio localizado em Westerbork, Holanda, denominado Westerbork Synthesis Radio Telescope, mencionado em vABBS pela sigla WSRT. A emissão de rádio ocorre não só na frequência de 1420 MHz, correspondente ao comprimento de onda de 21 cm, mas também em frequências vizinhas, deslocadas para o vermelho e para o azul. As frequências deslocadas para o vermelho representam o gás que se afasta do observador e as deslocadas para o azul o gás que se aproxima do observador. A análise cuidadosa destas emissões permite deduzir a curva de rotação da galáxia. É claro que isto também pode ser feito para a emissão no visível. A vantagem de se utilizar o HI é que ele se estende para distâncias do centro galáctico bem maiores do que as estrelas ou gases ionizados. [Um exemplo detalhado da determinação de curvas de rotação de estrelas e de gases ionizados pode ser visto em Carvalho (2006).]
A figura 3 mostra as observações representadas por curvas de mesma intensidade em radiofrequência. Estas curvas são também chamadas de “isofotas”.
A curva de rotação do HI será utilizada para se determinar a distribuição de massa na galáxia NGC 3198, considerando-se que a gravitação é newtoniana.
NGC 3198 é dominada por um disco — seu bojo e sua barra são desprezíveis, como vimos — e vABBS usaram uma distribuição de massa teórica na forma de um disco, ajustado às características observacionais do disco real, quais sejam, a sua densidade de massa central e as suas dimensões espaciais. A partir deste disco eles calcularam qual seria a velocidade de rotação do gás em função do raio, i.e., a sua curva de rotação. Esta curva não se ajusta de forma alguma à curva de rotação observada.
Então eles tiveram de lançar mão de mais uma distribuição de massa que, somada à distribuição do disco, pudesse explicar satisfatoriamente os dados observados. O modelo escolhido foi a distribuição denominada esfera isotérmica não singular, na forma de um halo que envolve a galáxia. Naturalmente que este halo é escuro, pois o que é visto é apenas o disco. A esfera é chamada de “isotérmica” porque as partículas de massa que a formam possuem dispersão de velocidades constante, o que representa, numa analogia termodinâmica, um sistema de temperatura constante, ou isotérmico. E ela é “não singular” porque a densidade em R = 0 não é infinita — o que ocorre na esfera isotérmica singular. Por este motivo, a esfera isotérmica não singular é também chamada de esfera isotérmica “com caroço”, pois a singularidade central é substituída por um “caroço” com densidade aproximadamente constante. A distribuição possui massa total infinita e o ajuste da curva de rotação não permite saber se a esfera isotérmica sofrerá um corte em determinado raio, por causa da falta de dados para grandes raios. Ao se fazer o ajuste, o corte é feito de forma ad hoc, ou seja, de forma arbitrária, com o objetivo único de se obter o ajuste desejado.
Este halo, como dito acima, não é observado de forma direta. Ele só se evidencia por causa do ajuste perfeito obtido para a curva de rotação. Ou seja, o halo escuro é justificado pela dinâmica da galáxia. É importante lembrar que o halo escuro aparece no contexto da aplicação da gravitação newtoniana. Se se considerar outra forma de gravitação, aí a história muda totalmente e foge do escopo da presente discussão (ver mais sobre as alternativas à gravitação newtoniana em Soares 2010).
O ajuste obtido por vABBS pode ser visto em sua figura 4, página 309.
A figura 4 apresentada a seguir mostra o ajuste às observações obtido aqui usando um “disco” mais uma esfera isotérmica com caroço. Como pode ser visto, o ajuste é muito bom. Mas há um detalhe importante. O “disco” utilizado aqui não é realmente uma distribuição de massa de disco, mas sim uma distribuição esférica de massa com as mesmas características do disco, ou seja, uma grande concentração de massa em torno de R = 0. Os discos das galáxias espirais são muito densos no interior e com densidades pequenas nas regiões externas. A vantagem de se utilizar a distribuição esférica é a de se simplificar extremamente os cálculos pois o cálculo do campo gravitacional de qualquer distribuição esférica de massa é, em geral, muito mais simples do que o mesmo cálculo para uma distribuição em forma de disco. A distribuição usada é chamada de “esfera de Plummer”, por ter sido adotada pela primeira vez pelo astrônomo inglês H. C. Plummer (1875-1946) no estudo de aglomerados globulares. A esfera de Plummer possui massa finita, apesar de se estender até o infinito. O raio RG do disco, mostrado na figura 4, representa uma região da esfera de Plummer que contém 94% da massa total do modelo, sendo, portanto, uma representação satisfatória do raio galáctico.
É importante salientar, no entanto, que para um ajuste rigoroso e realista , o modelo de massa de disco deve ser utilizado, como feito em vABBS. Mas o resultado é qualitativamente o mesmo e serve para uma discussão conceitual da questão da matéria escura, como é o objetivo aqui.
Os interessados na descrição matemática da esfera isotérmica com caroço e do modelo de Plummer podem consultar a seção 2.1 de Soares (1990).
Note que as velocidades do disco (vD) e do halo (vH) devem ser somadas de forma quadrática para se obter a velocidade total de rotação (vT), ou,
Uma questão importante é se saber qual é o tamanho dos halos escuros que envolvem as galáxias. As curvas de rotação permanecem planas, i.e., com valores constantes, até os últimos pontos observados. Este é um comportamento geral, como pode ser visto em Persic, Salucci e Stel (1995). Então, deve-se encontrar um traçador que permita a investigação do campo gravitacional das galáxias para extensões maiores do que aquelas alcançadas pelas curvas de rotação de HI. O próximo traçador, neste contexto, é uma outra galáxia. Sendo assim, tornou-se bastante popular o estudo de pares de galáxias com o objetivo de se estudar a matéria escura nestes sistemas e, se possível, determinar se o halo escuro possui um tamanho finito. Um exemplo deste tipo de estudo está em Soares (1990) e nas referências lá citadas.
Agradecimento – A figura 4 foi confeccionada em um dos computadores do Instituto Astronômico Kapteyn, Groningen, Holanda, sob os auspícios do Prof. Reynier Peletier.
D.B. de Carvalho, Espectroscopia de galáxias em sistemas múltiplos, Dissertação de mestrado (2006).
M. Persic, P. Salucci e F. Stel, The Universal Rotation Curve of Spiral Galaxies: I. the Dark Matter Connection, www.researchgate.net/publication/1810585 (1995).
SDSS, Sloan Digital Sky Survey, www.sdss.org (2020).
D. Soares, Binary galaxies with dark halos. I - Dynamics, Astronomy and Astrophysics 238, 50 (1990).
D. Soares, Matéria escura em galáxias espirais, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/ensino/matesc-2009.pdf (2010).
D. Soares, Universo relativista: expansão no espaço ou do espaço?, lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/expn/expn.htm (2012).