26 de janeiro de 2015
O universo pode ser comparado a uma “Floresta Cósmica”, cujas árvores são as galáxias. Estas, por sua vez, são povoadas de “bosques estelares”, que são os aglomerados estelares. A visão noturna da Floresta Cósmica é semelhante à visão noturna no interior de um destes aglomerados, ou seja, o céu noturno é escuro tanto para a “Floresta” quanto para os “bosques”. Para demonstrar esta afirmação, discuto quantitativamente a visão noturna de um habitante de um planeta que orbita uma estrela pertencente a um aglomerado estelar.
Discuti esta questão em suas várias nuances no ensaio A escuridão da noite e o universo em que vivemos, o oitavo capítulo de meu livro inédito intitulado O Reino das Galáxias.
O físico e cosmólogo inglês Edward Harrison (1919-2007), como lemos naquele ensaio, resolveu de uma vez por todas o “paradoxo”. A expressão mais simples da solução é “o universo é realmente muito grande mas a disponibilidade de energia não é suficientemente grande para que o céu noturno brilhe com a intensidade do disco solar.”
Uma analogia utilizada frequentemente na discussão da escuridão do céu noturno é a da floresta. As árvores — os seus troncos — são comparadas às galáxias do universo, ou às estrelas de um aglomerado estelar. Um observador no interior de uma floresta terá duas visualizações possíveis de seu entorno: ou verá um muro de tronco de árvores ao longe, ou verá o céu por entre os troncos como na figura abaixo.
O conceito importante na discussão da Fig. 1 é a “distância de recobrimento”, ou “limite de fundo”, D. A ideia é simples: se o tamanho da floresta for maior que D, veremos um muro de troncos ao fundo, caso contrário, veremos o céu entre os troncos. Se cada árvore ocupa uma área média do solo igual a A e possui um tronco de diâmetro médio d, a distância de recobrimento vale D=A/d (um exercício interessante e de fácil solução: demonstre esta relação).
Isto pode ser testado experimentalmente em um pequeno bosque: basta contar quantas árvores existem num quadrado de 10×10 m2, por exemplo, medir o diâmetro de todas as árvores existentes nele, e subsequentemente, calcular as médias relevantes. A experiência pode ser feita em “bosques de muro” e em “bosques de céu”, e os resultados obtidos para D confrontados com os respectivos bosques.
Os aglomerados estelares são grupos de estrelas, ligadas gravitacionalmente, que habitam as galáxias. Um aglomerado estelar pode ser comparado a um “bosque tridimensional de estrelas”. Podemos aplicar o mesmo conceito de limite de fundo visto acima para analisar as visualizações possíveis de um observador localizado no interior de um aglomerado estelar, o nosso bosque estelar.
Estamos prontos agora para discutir em mais detalhes os aglomerados estelares. Isto será feito na próxima seção. Na última seção apresento algumas considerações adicionais.
Sendo um aglomerado estelar um bosque estelar, a sua distância de recobrimento pode ser calculada de forma semelhante à feita para o bosque da Fig. 1. A diferença é que aqui temos uma geometria tridimensional. Ao invés de usarmos a área média do solo ocupada por uma árvore, usaremos o volume médio V ocupado por uma estrela. E no lugar do diâmetro médio do tronco, usaremos a superfície média do disco estelar S. Assim, a distância de recobrimento D será
Para os cálculos nas seções seguintes usarei S como sendo igual à superfície do disco solar. O diâmetro do Sol vale dsol = 1,4×106 km; Ssol = (πdsol2)/4 = 1,5×1012 km2 = 1,6×10−15 pc2 (1 pc ≡ 1 parsec = 3,26 anos luz = 3,1×1013 km).
A Fig. 2 apresenta um exemplo típico de aglomerado aberto. Ele é denominado M 45, no catálogo Messier, determinado pelo astrônomo francês Charles Messier (1730-1817), e possui duas entradas, NGC 1432 e NGC 1435 no The New General Catalog of Nebulae and Clusters of Stars, compilado pelo astrônomo dinamarquês John Dreyer (1852-1926). Cada uma destas duas denominações corresponde a uma parte do aglomerado.
A simples observação da imagem das Plêiades mostra claramente que o limite de fundo não foi atingido. Em outras palavras, se calcularmos a distância de recobrimento para este tipo de aglomerado devemos encontrar um valor muito maior do que as suas dimensões.
J. Binney e S. Tremaine, autores do livro Galactic Dynamics (1987), fornecem os dados de que precisamos: eles apresentam na Tabela 1-3, pág. 26, a densidade central de um aglomerado aberto típico, ρaber = 100 Msol/pc3. Supondo a massa média das estrelas do aglomerado aberto igual a 1 Msol, esta densidade estelar de massa corresponde a uma densidade numérica de estrelas igual a ρ = ρaber/1 Msol = 100 estrelas/pc3. O volume médio ocupado por uma estrela é então V = 1/ρ pc3 = 0,01 pc3. Estes números fornecem
A eq. 2 mostra que a distância de recobrimento para aglomerados abertos típicos é 6.000 gigaparsecs, o que é, obviamente, muito maior do que o tamanho de um aglomerado aberto. Um aglomerado aberto está, portanto, longe de ter atingido o limite de fundo e um habitante de uma estrela no seu interior verá um céu bastante escuro à noite. Em última instância, ele verá a escuridão profunda da Floresta Cósmica através do aglomerado em que vive: o bosque não bloqueia a visão da Floresta.
O aglomerado globular Ômega de Centauro visto na Fig. 3 é um sistema típico.
Pode-se notar que em ω Cen o limite de fundo também não foi atingido, ou seja, a Floresta Cósmica pode ser vista através do aglomerado, apesar do brilho difuso em torno da região central do aglomerado. O cálculo da distância de recobrimento confirmará esta impressão visual.
Binney e Tremaine fornecem para aglomerados globulares típicos a densidade, na região central, ρglob = 8×103 Msol/pc3. Isto corresponde a uma densidade numérica de estrelas ρglob/1 Msol = 8×103 estrelas/pc3. O volume ocupado por uma estrela na região do núcleo do aglomerado é então, como antes, o inverso da densidade numérica de estrelas, V = 1/ρ pc3 = 1,25×10−4 pc3. A distância de recobrimento para um aglomerado globular típico vale
Como vemos, Dglob é extraordinariamente maior que a dimensão típica de um aglomerado globular (100 a 200 pc), e é cerca de 100 vezes menor do que Daber (cf. eq. 2) — como era de se esperar, devido à maior densidade de estrelas.
Novamente concluímos que um habitante de um planeta, que orbita uma estrela no núcleo de um aglomerado globular, verá o céu escuro à noite, e como antes, o bosque não bloqueia a visão da Floresta, mesmo sendo o ambiente estelar muito mais denso.
A densidade de massa estelar na região local — excluindo-se, portanto, gás e matéria escura — vale, de acordo com Binney e Tremaine (pág. 202) 0,072 Msol/pc3. O volume médio ocupado por uma estrela na vizinhança solar é então aproximadamente 14 pc3, calculado como na seção 2. Nos aglomerados abertos este volume é de 0,01 pc3 e nos aglomerados globulares é de 1,25×10−4 pc3, ambos consideravelmente menores do que na vizinhança do Sol. Isto significa que o nosso céu noturno é bem mais escuro do que naqueles ambientes. Os céus noturnos dos bosques estelares são escuros, como vimos, mas consideravelmente mais estrelados do que o nosso céu noturno, especialmente a região central de um aglomerado globular. Nesta, a densidade de estrelas é mais de 500 vezes maior do que a densidade estelar na vizinhança solar. Incidentalmente, o volume de 14 pc3 por estrela na vizinhança do Sol pode parecer muito grande, se lembrarmos que a estrela mais próxima do Sol (Proxima Centauri) está a pouco mais de 1 pc; não há contradição, no entanto, pois a região local é representada por uma esfera de 150 pc de raio centrada no Sol e o volume de 14 pc3 é o volume médio por estrela em toda esta região.
Como na Floresta Cósmica — o universo —, nos bosques estelares não há energia suficiente para que o céu noturno seja luminoso como a superfície do Sol. Podemos dizer, no caso dos bosques, que não há estrelas suficientes para que o céu seja inteiramente encoberto.
Em tempo, a distância de recobrimento da Floresta Cósmica, calculada por Edward Harrison, é de aproximadamente 30 trilhões de gigaparsecs! Este limite de fundo fenomenal e as suas consequências para a visão profundamente escura do céu noturno são discutidos em Soares (2008).
Muitas vezes os aglomerados globulares dão a impressão de que limite de fundo foi atingido em seu núcleo, como, por exemplo, o aglomerado 47 Tucanae mostrado na Fig. 4. Ele situa-se na constelação do Tucano, sempre visível em nosso céu, alguns graus a Oeste da Pequena Nuvem de Magalhães, galáxia anã satélite da Via Láctea. A sua imagem apresentada aqui dá a falsa impressão de que a distância de recobrimento na sua região central é menor que as suas dimensões, pois a visão do fundo de céu está bloqueada. Na verdade, isto é um problema técnico na obtenção da imagem, a saber, uma deficiência em resolução espacial. Um habitante desta região veria um céu espetacularmente estrelado mas absolutamente escuro. A Floresta Cósmica estaria bem visível por entre as estrelas.
Em COSMOS:15mar13 mencionei um provável pesadelo do céu noturno em aglomerados globulares, que seria o brilho intenso do céu à noite como consequência de se ter atingido o limite de fundo. Fui obviamente enganado pela falsa impressão dada por imagens como a de 47 Tuc, que é uma representação comum de um aglomerado globular qualquer. Esta ideia preconcebida parece-me agora surpreendente pois a imagem que utilizei para ilustrar o tal pesadelo foi a de ω Cen, a mesma que aparece aqui na Fig. 3. Nesta imagem vê-se bastante bem que realmente não há o bloqueio da visão na região central, sendo percebido apenas uma luminosidade difusa causada pela deficiência na resolução espacial dos instrumentos utilizados, que embora alta, ainda não é suficiente para “resolver” — i.e., separar — as imagens individuais das estrelas. A resolução espacial limitada de nossos olhos, dada pela abertura da íris (pupila), também proporciona a percepção de uma aparência ligeiramente “leitosa” da região central do aglomerado, especialmente na imagem de ω Cen (Fig. 3).
D. Soares, A escuridão da noite e o universo em que vivemos (www.fisica.ufmg.br/~dsoares/reino/noite.htm, 2008).
D. Soares, COSMOS:15mar13 (www.fisica.ufmg.br/~dsoares/cosmos/13/cosmos5.htm, 2013).
D. Soares, O Reino das Galáxias (www.fisica.ufmg.br/~dsoares/reino/reino.htm, inédito).