O dilema da idade do universo


Domingos Soares

17 de junho de 2015



Resumo

Um universo em expansão possui dimensões nulas em algum instante no passado. Este evento é denominado singularidade. A “idade do universo” é o intervalo de tempo transcorrido desde a singularidade até hoje. Esta idade pode ser calculada a partir dos modelos cosmológicos, mas os primeiros modelos do universo forneceram uma idade menor do que a idade dos objetos astronômicos conhecidos (Terra, Sol, estrelas), o que resulta em um dilema. Discuto aqui a questão deste dilema e das tentativas primitivas de eliminá-lo.



Completo agora a discussão do artigo do astrônomo suíço Harry Nussbaumer intitulado Einstein's conversion from his static to an expanding universe (ver em http://arxiv.org/abs/1311.2763). A primeira parte da discussão está em COSMOS:17fev14.

Discutirei agora a questão do dilema da idade do universo, que surgiu junto com os primeiros modelos relativistas de expansão do universo. Se o universo está em expansão, em algum instante no passado as suas dimensões foram nulas. Este evento é denominado singularidade, Big Bang ou Estrondão. Desta forma, pode-se atribuir uma idade para o universo, qual seja, o intervalo de tempo transcorrido desde a singularidade até hoje (mais detalhes no artigo O que a Astronomia e a Cosmologia têm a dizer sobre a idade do universo).

A idade destes modelos é da ordem de grandeza do tempo de Hubble, ou TH, que é igual ao inverso da constante de expansão, a chamada constante de Hubble, ou seja, TH=1/Ho. (Lembremos que esta constante tem dimensões de velocidade por distância, que é o mesmo que inverso do tempo).

Um modelo supersimplificado de um universo em expansão mostra como pode ser isto. Considere um universo em que as galáxias são corpos de prova, ou seja, objetos de massa desprezível. A massa total do universo é então próxima de zero e a expansão das galáxias será uniforme. Uma galáxia se expande com velocidade v desde t=o até hoje, quando ela percorreu uma distância d desde a singularidade inicial. Como ela obedece à lei de Hubble tem-se v=Hod. Sendo o movimento uniforme, o tempo transcorrido desde t=0 será, portanto, TH=d/v=1/Ho.

Ora, na época de que tratamos, em torno de 1930, a constante de Hubble fora calculada por Hubble como sendo aproximadamente Ho=500 (km/s)/Mpc. O inverso disto vale 1/Ho=2×109 anos, i.e., TH=2 bilhões de anos (por favor, confiram!). Acreditava-se então que a idade do Sol e das outras estrelas seria da ordem de 1012 anos, o que era irremediavelmente maior do que TH, 1.000 vezes maior. Na verdade, a idade das estrelas era superestimada devido a uma superestimação da eficiência da conversão de massa em energia nos interiores estelares através de E=mc2 (Nussbaumer, p. 14). Esta diferença apresentava-se devastadora para Eddington, Lemaître e Einstein. E eles procuraram uma maneira de sair deste dilema: a parte — as estrelas — não podia ser mais velha do que o todo — o universo. Vamos então às soluções que eles apresentaram.

Eddington supôs que deve ter havido um longo período estático, do tipo do universo de Einstein, antes da deflagração da expansão (Nussbaumer, pp. 13 e 14). A idade do universo pode ser feita arbitrariamente grande e assim resolver o dilema.

Lemaître propôs uma solução mais complexa, com uma constante cosmológica variável desde a singularidade inicial, que ele chamava de átomo primitivo. A constante cosmológica Λ aqui possui um efeito repulsivo sobre as galáxias e aumenta com o tempo. Λ é pequena inicialmente e a expansão é desacelerada pela atração gravitacional da matéria existente. Em seguida Λ equilibra a atração gravitacional e segue-se um período do tipo estático de Einstein. Logo Λ sobrepuja a atração gravitacional do universo e segue-se, finalmente, uma expansão acelerada, exatamente como se advoga hoje em dia. A idade deste modelo pode ser muito grande, e resolver o dilema, dependendo dos valores relativos de Λ e da densidade de matéria-energia do universo.

O diagrama à esquerda, na figura abaixo, é de uma conferência de Lemaître, publicada em 1947, e ilustra a sua solução do dilema. A atração domina na primeira expansão, a atração e a repulsão se equilibram na estagnação e a repulsão domina na segunda expansão. Lemaître é, devido a esta solução, o maior dos precursores do modelo moderno da cosmologia. A saída que ele encontrou contém conceitos ainda utilizados hoje em dia, especialmente a transição de uma fase desacelerada para uma fase acelerada, como ilustra o diagrama à direita, que é uma realização quantitativa moderna da ideia esboçada no diagrama à esquerda. A equação da curva da direita é uma solução da equação de Friedmann com constante cosmológica (veja um exemplo disto em O universo estático de Einstein). A expressão que fornece o tempo t em função do fator de escala R é:


t(R) = 2/(3Ho) ΩΛo-1/2 ln{ [1+(ΩΛomo)R3]1/2 + [(ΩΛomo)R3]1/2 },


onde ΩΛo e Ωmo são os parâmetros de densidade associados à constante cosmológica e à matéria no universo. No presente modelo temos ΩΛo = 0,7 e Ωmo = 0,3, resultando em ΩΛo + Ωmo = 1, ou seja, o universo possui geometria espacial plana ou euclidiana 1.

A idade do universo, neste modelo, é obtida fazendo-se R = 1 no diagrama da direita (ou na equação acima), com Ho = 70 (km/s)/Mpc. Ela vale 1,45 × 2/(3Ho) = 13,5×109 anos, consistente, dentro dos erros experimentais, com as idades dos objetos mais velhos da Via Láctea. O dilema é desta forma resolvido, no contexto da cosmologia moderna (mais detalhes em Soares 2009).


À esquerda, a história da expansão do universo segundo Georges Lemaître. O eixo vertical mostra o fator de escala do universo R(t) que, para efeitos práticos, representa o tamanho do universo no instante t, o qual é mostrado no eixo horizontal. Ro é o tamanho do universo atual e RE é o tamanho do universo na fase estática (modelo de Einstein). A história cósmica é ditada pela relação entre as intensidades da atração gravitacional e da repulsão cósmica causada por Λ. O período de tempo representado por TH=1/Ho só se refere à segunda expansão (Nussbaumer, p. 14). À direita, o diagrama mostra o fator de escala para um universo com uma fase acelerada em épocas cósmicas recentes. A idade do universo neste modelo está mostrada e corresponde ao fator de escala unitário. Note a mudança de concavidade da curva pouco antes do fator de escala igual a 1, o que indica que a expansão mudou de uma fase desacelerada para uma acelerada.


A solução de Eddington é representada na figura acima apenas pelas fases de estagnação e de segunda expansão.

Finalmente, Einstein apresenta duas possíveis soluções (Nussbaumer, pp. 19 e 23). A primeira afirma que a não homogeneidade do universo real tornaria as soluções relativistas inapropriadas, resultando em um cálculo incorreto da idade do universo. A segunda recorre a uma solução cíclica, do tipo do modelo fechado de Friedmann (veja figura 1 de “Observações sobre as soluções clássicas da equação de Friedmann”), que ele apresentou em um artigo no ano de 1931 (Nussbaumer, p. 23). Por razões óbvias, um modelo cíclico pode ter uma idade tão grande quanto se queira. O artigo de Einstein de 1931 nunca teve grande repercussão, além de conter alguns erros; uma tradução para o inglês e uma análise do mesmo podem ser vistas em http://arxiv.org/abs/1312.2192.

O dilema da idade do universo permanece hoje em dia e a solução encontrada pelos modernos cosmólogos relativistas — uma adaptação da solução de Lemaître — é insatisfatória, pois necessita de componentes de matéria e energia ainda não observadas (ver relato deste problema no artigo “Cosmologia moderna: tateando no escuro”).


Agradecimento – A figura do fator de escala versus tempo foi confeccionada em um dos computadores do Instituto Astronômico Kapteyn, Groningen, Holanda, sob os auspícios do Prof. Reynier Peletier.


 

1Incidentalmente, o modelo estático de Einstein é também uma solução da equação de Friedmann com constante cosmológica, com a notável diferença de que possui geometria espacial curva, a saber, esférica (ver O universo estático de Einstein). Volta.

 


Leia outros artigos em www.fisica.ufmg.br/dsoares/notices.htm.